"A relação entre a seleção nacional e as grandes fases finais foi mudando ao longo da história. Nas primeiras décadas dos Europeus e Mundiais, estar nestes torneios era, para Portugal, todo um acontecimento, quase uma expedição a um planeta desconhecido, um feito geracional. O talento e a fortuna poderiam levar a epopeias improváveis (1966 e 1984), momentos de orgulho para um país ainda cheio de complexos de inferioridade, mas a desorganização estrutural poderia conduzir ao desastre e caos (1986).
O crescimento estrutural do futebol português, as melhores condições de trabalho, a consolidação internacional da “geração de ouro” e a expansão dos torneios provocaram uma primeira alteração de paradigma. Da era dos ousados exploradores, em que um Europeu ou um Mundial eram um fenómeno cósmico raro, passámos para um ciclo de regularidade, encadeando diversas fases finais consecutivas pela primeira vez na história.
A seleção ganhou prestígio internacional e normalizou a ida aos maiores palcos. Vista como equipa de grande talento, Portuga era uma espécie de outsider de luxo, que poderia discutir os títulos sem que isso fosse uma enorme surpresa (2000, 2004 ou 2006), realizar prestações normais, nem especialmente boas nem marcadamente más (1996 ou 2008) ou, claro, falhar com estrondo (2002).
Quando a equipa nacional já tornara o que eram expedições a um planeta desconhecido em idas constantes a cenários familiares, um rapaz partiu da Madeira para agarrar a seleção pelo pescoço e torná-la parte fundamental do seu projeto de ambição infinita. E eis que chegou uma terceira fase, os anos em que a seleção era Ronaldo e Ronaldo era a seleção, uma relação que não se entende sem uma das partes. Com menor abundância de talento do que noutras alturas, houve 2012, quando Cristiano atou Portugal ao seu foguete de exploração dos Everestes da bola e quase chegou a uma final, 2014, quando uma lesão do avançado foi o começo da debacle, e 2016, a eterna 2016, o tão desejado título.
E chegamos aos últimos anos. A era da coexistência. A época do Ronaldo pós-trintão, do Cristiano da Juventus, do United 2.0 e do Al-Nassr, unido à abundância de talento de elite que não existia no auge do madeirense. Estar em Europeus e Mundiais já nem é sinal de regularidade, é mera formalidade exigida, mas 2018, 2020 ou 2022 trouxeram dúvidas e incertezas. Sim, havia, talvez, mais qualidade que nunca, mas, pela prisão à fórmula conservadora de 2016, por incapacidade de potenciar o talento ou seja pela razão que for, nunca tivemos um Portugal a abraçar convictamente a essência desta nova fase da seleção: aqui está uma das equipas com mais condições do mundo para ganhar títulos.
Portugal tem uma formação de elite, uma produção de talento que causa inveja lá fora. Ainda anteontem nos supreendíamos com Leão e Félix e ontem já estavam a aparecer Nuno Mendes e Vitinha e hoje já estão aí João Neves e António Silva.
Portugal tem uma seleção consensual, sem as mil e uma guerras internas que parecem sempre à beira de acontecer, por exemplo, em França e Espanha. Portugal tem menos pressão asfixiante do que equipas que, historicamente, colocam o triunfo nas grandes competições como uma obrigação associada ao estatuto, como a Alemanha ou o Brasil. Portugal tem um grupo de jogadores com muitos quilómetros juntos, seja na seleção principal — entre as opções habituais de Martínez há nove futebolistas com mais de 50 internacionalizações —, seja nas equipas jovens, onde muitos foram campeões ou vice-campeões da Europa de sub-17, sub-19 ou sub-21.
Sendo coerentes com este processo, com esta passagem da seleção das explorações audazes para a equipa das presenças regulares que corria por fora, do conjunto onde havia Ronaldo e mais 10 para o coletivo cheio de gente que brilha no City, no United, no Liverpool, no PSG, no Bayern ou no Barça, só há uma meta a colocar para os próximos tempos da relação de Portugal com as grandes finais. O discurso do “fazer o melhor possível” ou do “chegar o mais longe possível” não cola nem adere à realidade. A seleção nacional é óbvia candidata a ganhar o Euro 2024.
Um apuramento histórico, com 10 vitórias em 10 partidas, tem de ser o ponto de partida para abordar os maiores torneios com ambição e audácia, conectando as expetativas com a exigência diária a que estes jogadores de elite estão sujeitos. Portugal tem mais abundância de talento do que a Itália ou os Países Baixos; tem uma seleção mais estável e com mais tempo de trabalho junta do que a Alemanha ou a Espanha; tem maior estabilidade interna que a França e menor pressão e exigência do que a Alemanha.
Não se pretende aqui dizer que podemos todos começar já a agendar festejos para a noite de 14 de julho de 2024, após a final de Berlim — e esta é a parte do texto em que recorremos ao óbvio para dizer que é um torneio curto, em que a sorte e o azar jogam papéis importantes e etc e tal. Mas colocar a seleção a olhar para o futuro — para este Euro e para as próximas grandes competições — com a ambição que as circunstâncias a obrigam a apresentar é uma necessária mudança de perspetiva que este ciclo obriga a fazer."
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