"Pedimos a um argentino radicado em Portugal para nos explicar o que é, então, a Argentina e o que representou Maradona para os seus compatriotas. Um retrato de um país que é diferente de todos os outros da América Latina, que combina uma enorme classe média, bem rara no continente, com a insolência plebeia.
O seu velório foi como a sua vida: caótico, apaixonado, violento, brilhante. Diego Maradona encarnou a parábola argentina melhor do que um tratado académico: de origem humilde, atingiu reconhecimento mundial para depois se afundar, aos soluços, numa irremediável decadência. Porém, a decadência foi sensorial e não espiritual: o seu coração foi-se degradando até, um dia, parar. Mas, no coração dos seus seguidores, El Diego nunca deixou de bater.
A Argentina é um país diferente na América Latina, um facto reputado como positivo pelos argentinos – e, digamos, menos positivo pelos vizinhos. No resto do continente é válida a análise realizada pelo antropólogo brasileiro Roberto DaMatta, em 1978, no livro “Carnavais, Malandros e Heróis”.
DaMatta foca-se na expressão “Você sabe com que está falando?” para mostrar como um indivíduo de classe social privilegiada põe no seu lugar outro de classe desfavorecida. A locução é um exercício dissuasório tácito mas efetivo, porque na América Latina os setores subalternos tendem a aceitar a sua posição.
Na Argentina, não.
A sociedade rio-platense combina uma enorme classe média, bem rara no continente, com a insolência plebeia. O politólogo argentino Guillermo O’Donnell sintetizou a resposta que um argentino daria à pergunta de DaMatta no título de um texto brilhante: “¿Y a mí, qué me importa?”. A versão publicada em inglês pela Universidade de Notre Dame é ainda mais fiel ao conceito: “And why should I give a shit?”.
A atitude rebelde de Maradona perante a vida e o poder foi, sempre, a expressão combinada da sua nacionalidade com a sua origem de classe.
A sua carreira desportiva tocou o céu em 1986, quando levantou a Copa no mundial do México. Contudo, o jogo definitivo não foi a final, 3-2 contra a Alemanha, mas a vitória 2-1 nos quartos-de-final contra a Inglaterra. Apenas quatro anos antes, os dois países tinham-se enfrentado militarmente pelas Ilhas Malvinas.
O futebol oferecia agora a revanche, e Maradona liderou a carga. Honrando a bipolaridade argentina, Diego marcou o golo mais batoteiro e o mais bonito na história dos mundiais. O campeonato coroou a democracia recentemente conquistada pelos argentinos sob o presidente Raúl Alfonsín, tal como a vitória mundial dos Springboks coroaria em 1995 a democratização sul-africana sob Nelson Mandela. Maradona, como depois François Pienaar, transformou-se assim em símbolo de muito mais do que um desporto.
A sua vida pessoal tem menos para celebrar e mais para comiserar. Memento mori (“lembra-te que és mortal”), repetia um servo aos generais que marchavam vitoriosos pelas ruas de Roma para evitar que se cressem deuses omnipotentes. Maradona cresceu rodeado de pessoas que repetiam o contrário, sos D10s (“és Deus”, um acrónimo total que combina o número da sua camisola com a divindade).
O anonimato e a privacidade tornaram-se impossíveis numa escala global. Imaginem nunca mais poder sair tranquilamente à rua em nenhum lugar do mundo… desde os 25 anos! Quiçá apenas os The Beatles viveram algo parecido, e também eles acabaram na droga. Mas, pelo menos, tinham-se os uns aos outros.
Os argentinos, sempre humildes, estão habituados a produzir ícones mundiais. Desde Evita até Maradona, passando pelo Che Guevara e Mafalda, o problema não é atingir a glória mas administrá-la. Também aqui El Diego encarna a degradação do país dos excessos: o velório de Evita, em 1952, desenrolou-se em perfeita ordem durante 16 dias; setenta anos depois, o velório de Maradona na casa de governo foi encurtado depois de umas horas e acabou em escândalo e repressão.
O rival histórico da Argentina é o Brasil. Essa rivalidade tinge absolutamente tudo, até a eleição papal. Quem não acreditar pode ver La Cumbia Papal, um vídeo satírico lançado imediatamente a seguir à nomeação do Papa Francisco em março de 2013. Nele sobressaem duas constantes: o gozo contra os irmãos brasileiros e a recorrência a frases maradonianas, como “a bola não se mancha” e “fugiu-lhe a tartaruga” (uma acusação pouco velada de incompetência).
Porque os brasileiros tiveram, no grande Pelé, O Rei. Não se deixando intimidar, os argentinos encontraram no pequeno Maradona o mesmíssimo Deus. Então, perguntará o leitor, e o Papa? Sem dúvidas, responderemos, é o segundo argentino mais celestial da história."
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