"Nos dias que correm, comparar Cristiano Ronaldo a Lionel Messi tornou-se aborrecido. Sempre que um se transcende e a legião de admiradores lhe exalta as qualidades, logo o outro se encarrega de se transcender também, calando a turba. Manda a sensatez, por isso, que não se lhes comparem os atributos. Entre aqueles que têm opiniões acerca de futebol, há um grupo para quem isto é lei. É aquele que, quando confrontado com a questão, se apressa a esclarecer os mais ingénuos afirmando com sisudez: ‘São jogadores diferentes!’ A afirmação é, de facto, verdadeira. E profundamente inútil, também. Que são diferentes qualquer pessoa sabe. Dir-nos-á por acaso o ornitólogo a quem pedimos para comparar o pavão ao milhafre que é passarada diferente e não é ajuizado andar a compará-la? O truísmo é na verdade uma evasiva: serve para não comprometer quem a ele se agarra com uma opinião mais firme acerca de qual dos dois prefere. Como se sabe, em Portugal é particularmente difícil defender que Messi é melhor que Ronaldo, e quem o tenta ou é porque não sabe que o produto nacional é sempre melhor que o estrangeiro ou é porque tem inveja do sucesso do madeirense. Em Portugal, é muito difícil explicar às pessoas que se pode admirar muito Cristiano Ronaldo e, mesmo assim, ter por Lionel Messi maior admiração ainda.
Devo confessar que Ronaldo me foi surpreendendo ao longo da sua carreira. Quando começou a ter protagonismo a nível internacional, já em Manchester, não acreditava que pudesse atingir o nível que de facto atingiu. Não creio que tenha sido o único a pensar assim na altura, mas já se sabe que o país está cheio de visionários à posteriori. Embora considere que não me equivoquei a respeito do tipo e grau de talento que possui, equivoquei-me a respeito do seu potencial futebolístico. O equívoco, pelo menos em parte, resultou de lhe ter subestimado a capacidade de trabalho. Como não valorizei devidamente o empenho e a dedicação que sempre o caracterizou, não só não considerei a hipótese de se poder reinventar, que foi aquilo que a meu ver o catapultou para o patamar de excelência em que se encontra, como não considerei que fosse capaz de se manter tantos anos ao melhor nível. Confesso isto precisamente para começar a distingui-lo de Messi. É que, apesar de ser um atleta extraordinário, capaz de proezas atléticas que não estão ao alcance da maioria dos seres humanos, como aquele assombroso pontapé de bicicleta em Turim o ano passado, Ronaldo não é dos jogadores mais talentosos que já existiram. Os números são de facto impressionantes, os troféus são mais que muitos, e a sua competência em determinadas funções não tem paralelo. Mas com uma bola nos pés, e não obstante as suas soberbas capacidades técnicas, não está ao nível dos melhores. Ronaldo não é um jogador imaginativo, nem é extraordinário em espaços curtos. Se aceitarmos que o talento para o futebol tem acima de tudo a ver com a competência de um jogador para fazer coisas diferentes e inesperadas, para inventar espaços onde eles não existem e para ludibriar o mais compenetrado dos adversários, então Ronaldo não é particularmente talentoso. Basta aliás pensar no que consegue oferecer à equipa, hoje em dia, quando está longe das zonas de finalização. À excepção da velocidade que continua a emprestar aos momentos de transição ofensiva, fora da grande área Ronaldo é um jogador vulgar.
Desse ponto de vista, não poderia ser mais diferente de Messi. O argentino não é um portento físico como Ronaldo, nem tem a acutilância dele no momento de atacar a bola para finalizar. Também não parece ter a confiança inabalável em si mesmo que Ronaldo tem. Há uma série de características em que, de facto, Ronaldo leva a melhor. São em rigor aquelas que permitem dizer que, não obstante os números igualmente astronómicos de Messi, o madeirense é melhor finalizador. Dentro da área, e na função específica de atacar a baliza adversária, Ronaldo é incomparável. É aliás, muito possivelmente, o melhor de sempre nesse capítulo. E, no entanto, isso não chega para ser melhor do que Messi. O argentino pode não ser o atleta perfeito, mas é o futebolista mais genial que já existiu. Aquilo que consegue fazer com a bola, o virtuosismo técnico, a capacidade de drible, a intuição prodigiosa, a inteligência, a imaginação e a criatividade não se comparam a nada que se conheça. Se Ronaldo de algum modo representa a excelência do corpo, Messi representa a excelência da mente. Dificilmente o veremos a fazer acrobacias, ou a marcar golos na sequência de uma impulsão sobre-humana, mas faz coisas que nem sequer sabíamos que era possível fazer. Ao longo dos últimos anos, Ronaldo tem-nos oferecido momentos de excelência atlética, não há dúvida. Tem tornado realidade aquilo que achávamos que só era possível em imaginação. Messi, porém, tem feito o inimaginável. E tem-no feito jogo após jogo, há mais de uma década. Dentro da área é um dos melhores de sempre, mas fora dela é o jogador mais completo e constante que já houve. E tudo porque o seu talento, aquilo que se passa dentro da sua cabeça quando está a jogar futebol, é ímpar. A quantidade de problemas que é capaz de resolver e a qualidade com que os resolve, a originalidade das soluções que consegue apresentar para fazer face a esses mesmos problemas e a forma como torna simples o que para a maioria dos jogadores é dificílimo distinguem-no de qualquer outro.
Não é por Ronaldo e Messi serem diferentes que não podemos falar daquilo que os singulariza ou de que modo essa singularidade se concilia com os interesses colectivos de uma equipa. E, de facto, cada uma dessas singularidades implica modos diferentes de encarar o jogo. Ronaldo especializou-se de tal modo enquanto finalizador que a equipa que quiser tirar real proveito das suas qualidades tem de se moldar de algum modo a ele. Para que Ronaldo possa ser Ronaldo, o colectivo em que estiver inserido deve então focar-se na preparação daquelas situações de finalização em que Ronaldo pode especificamente fazer a diferença. Como é fortíssimo a atacar cruzamentos, seja pelo ar ou pelo chão, compete à equipa criar situações privilegiadas de cruzamento. Para tirar o melhor partido do avançado português, os colegas devem então ser capazes de criar situações de superioridade numérica junto à faixa, de modo a ganharem a linha de fundo e obrigarem a linha defensiva adversária a defender os cruzamentos enquanto recua, assim como devem ser capazes de criar desequilíbrios especificamente naquela zona entre o lateral e o central de modo a compelir todo sector defensivo adversário a reorganizar-se e, inevitavelmente, a abrir espaços que Ronaldo possa depois invadir. Em certa medida, foi isto que a Juventus conseguiu fazer a semana passada contra o Atlético de Madrid, e foi por tê-lo conseguido que Ronaldo brilhou. A forma como se apresentou em campo, com uma linha de três defesas (composta por Emre Can, Chiellini e Bonucci) a dar liberdade a João Cancelo e Spinazzola para avançarem pelas faixas, forçou a equipa espanhola a preocupar-se constantemente com a largura. Tal preocupação permitiu aos italianos gozarem de maior liberdade em espaços interiores, e foram precisamente as movimentações interiores dos médios e dos avançados (sobretudo Bernardeschi, Ronaldo e Mandzukic), todos eles com enorme amplitude de movimentos, que provocaram a maior parte dos desequilíbrios no adversário. Dois dos golos dos italianos nascem aliás de acções individuais de Bernardeschi, de longe o melhor em campo, apesar do hat trick de Ronaldo.
Para usufruir do melhor que o avançado português tem para oferecer, de pouco adianta à equipa em que estiver inserido forçar o jogo por dentro, procurar tabelas, apoios frontais e outras maneiras parecidas de desposicionar o sector defensivo adversário. Não há ganho nenhum em fazê-lo, até porque para colaborar em acções desse tipo Ronaldo é um jogador banal. Mesmo como avançado, não é excepcional em diagonais curtas, a suscitar um passe entre o central e o lateral. Ora, é justamente essa competência de Messi para jogar por dentro, para se associar com os colegas, para colaborar num jogo de passe e devolução constante, que privilegia a invasão do corredor central e o toque curto, que melhor distingue o argentino do português. Essa competência não é, no entanto, fruto de uma especialização. Ronaldo é fenomenal num momento muito específico do jogo; especializou-se de modo aproveitar da melhor maneira possível certas situações do jogo. Messi não é particularmente eficaz a responder a cruzamentos, mas é de classe mundial numa série de outras coisas, de que se serve em inúmeras situações de jogo. É aliás fácil perceber esta diferença: não só o raio de acção e influência de Ronaldo é bem menor do que o de Messi como a participação do português nos lances de ataque da sua equipa se reduz, muitas vezes, à conclusão das jogadas. É por isso que, ao contrário do que acontece com Ronaldo, não creio que haja uma maneira única de tirar o melhor proveito das características de Messi. Claro que, inserido numa equipa que privilegia a posse, que joga apoiado, pelo meio, e procura o espaço entre as linhas adversárias, Messi tenderá a exercer mais vezes a sua criatividade e a sua imaginação. Mas o argentino é tão forte em espaços curtos como em espaços mais largos, e não deixa de ser competente em acções de transição, por exemplo. É certo que não ofereceria o mesmo que Ronaldo se tivesse de desempenhar as mesmas funções que o português, mas poderia sempre jogar numa equipa formatada para tirar partido de um jogador como Ronaldo exercendo outras funções. Como Messi não se especializou em nada, não há propriamente uma especialidade à qual a maneira de jogar da equipa se possa adaptar. E é ele quem inevitavelmente se adapta à maneira de jogar da equipa. O talento de Messi é de tipo universal: o argentino não é fenomenal numa tarefa específica; é fenomenal a fazer aquilo que é transversal à grande maioria ou mesmo a todas as tarefas, a ler o jogo, a decidir em conformidade, a encontrar soluções para os mais diversos problemas, quaisquer que sejam as circunstâncias, etc.. Como dizem aqueles entendidos que se abstêm de fazer comparações, devemos de facto sentir-nos privilegiados por podermos apreciar em simultâneo dois jogadores tão invulgares como Ronaldo e Messi. Mas isso não impede que nos sintamos mais privilegiados quando vemos um deles a jogar. É evidente que podemos gostar muito de Ronaldo, e ainda assim preferir Messi."
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