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domingo, 12 de novembro de 2017

Futebol e amizade com origens e futuros diversos

"Decorreu novamente em Portugal mais uma edição Web Summit, na qual o universo da criatividade, da tecnologia e do futuro colocaram inúmeras questões que permitirão construir mundos imparáveis. 
Essa fantástica iniciativa, por momentos, levou-me para memórias de um tempo de criança.
Se agora, as crianças são uma geração “smartphone”, as da minha idade foram uma geração “jogos na lousa e na rua”.
Na escola da década de cinquenta/sessenta do século passado, ainda não completamente universal, uniformizavam-se equipamentos e materiais, da bata ao giz, do quadro ao apagador.
Mas eram as corridas, as lengalengas e tabuadas cantadas, as declamações de poesias decoradas, que se tornavam aquecimento para jogos de rua.
O pião, arco e gancheta, carrinho de rolamentos, lançamento de estrelas, corrida de “volta a Portugal” com sameiras (caricas), sprints a pé com guiadores de arame e fatalmente bola, muitas e diversas bolas (de meias, de plástico, de borracha e de couro, já nos tempos mais próximos) constituíam a tecnologia da época.
Descalços, com chinelos, xancas, sandálias, botas de pneu ou mais raramente com sapatos, assim se acarinhava a economia dos sapateiros e o negócio das meias solas.
Como os jogos na rua, muito particularmente o futebol, eram proibidos, tinham sempre a protecção avisadora dos assistentes que concentravam olhares na captação das imagens de polícias próximos… e muita cumplicidade dos mais velhos que funcionavam como claques protectoras (outros tempos!). 
Os locais variavam entre largos, ruas, bouças, terraços e quintais…
Por vezes, até as sarjetas (ou bueiros) dos passeios funcionavam como balizas, muito especialmente nos jogos de hóquei (algumas vezes com troços de couves substituindo o sitck ou aléu) onde se sonharam Livramentos, Adriões e Bouçós…
E todas as actividades e regras eram precisas, cumpridas sem grande conflitualidade.
Na sala de aula, as reguadas na mão (inesquecíveis “bolos”) procuravam resolver as distracções e a redução de capacidade de trabalho (vulgo, não fazer os trabalhos de casa). Na rua, todos controlavam o movimento (pouco intenso) de carros – eram tempos de andar a pé ou de eléctrico, de autocarro ou troleicarro…
Sem árbitros, sem adultos a impor limites, tudo se resolvia com facilidade (se assim não fosse podia ser o cabo dos trabalhos e mais tempo em casa sem sair).
Por exemplo, nos jogos de futebol, quando uma equipa se revelava mais frágil, aumentava-se o número de jogadores dessa equipa (com transferências directas e na hora, sem agentes nem intermediários) para que o jogo desse “forra” ou seja, que fosse disputado sem facilidades, sempre com incerteza de resultado.
No fim, mesmo naqueles jogos em que uma equipa estivesse a ganhar por 6 a zero, quem marcasse o próximo golo, ganhava e pronto.
Sem coreografias individualistas, sem festejos para além do fim do jogo, sem vedetismos desconhecidos, regressava-se a uma só equipa: a malta onde cada um conhecia e tratava o outro pelo apelido como fora baptizado na rua pelos seus companheiros… e até havia apelidos com herança familiar, uma certa nobreza de simplicidade.
Essa forma de identificação ainda se mantém, mas quase como sociedade secreta e só entre os próprios e sem testemunhas estranhas.
Entre nós, sem mais ninguém por perto, não utilizar a alcunha é snobismo inaceitável, ainda hoje.
Por isso, a festa do encontro permite-nos viajar no tempo, encher os olhos de mar límpido e um sorriso aberto e feliz.
Mesmo aqueles que tinham limitações físicas são sempre inteiros como cada um e, desse modo, estava acertado sem palavras que não era permitido nem tolerado fazer troça… quem o fizesse levava logo! Raramente existiam festas de aniversário com o gigantismo de hoje.
Mas havia festa todos os dias: a meio da tarde, alguns iam a casa para receberem das mães o pão com manteiga (outras vezes com marmelada ou geleia) e no regresso, com festividade colectiva, partilhava-se “o bolo”, sem velas nem cantorias mas com uma trinca valente e um rasgado agradecimento no olhar.
Dessas aventuras forjaram-se conceitos: amizade, lealdade, companheirismo, solidariedade, defesa dos mais frágeis, coragem e gosto pela liberdade e luta contra a injustiça. Os tempos não param e cada um foi traçando o seu caminho (ou o caminho o traçou para alguns) sem perdas de memórias ou vaidadezitas ridículas (há sempre um reduzido número dos que se deixam iludir por aparentes grandezas que nada mais são do que imperfeições de quem não compreendeu ou não pode cumprir bem esse mundo).
No futebol, como nas outras actividades profissionais e não só, a permanência dessa herança fantástica não carece de tecnologia, de realidade virtual, de ligações biotecnológicas, mas antes de um encontro frente a frente ou uma pescaria na memória.
Na rua, nos montes, nos descampados e nos vales nasceu o jogo, o futebol, da pré e da proto-história, em todas as épocas viajando da Antiguidade, do Soule da Idade Média, do Cálcio do Renascimento, sem parar até aos Galáticos de hoje, em competições com VAR e tecnologia de ponta.
Mas o factor humano que actualmente tantas confusões e climas que uns chamam de “ódio” (provavelmente porque não tiveram essa felicidade de conhecer os jogos desportivos de rua, ou porque nunca fizeram esforço e não se conseguiram enquadrar) ainda hoje é determinante.
Por isso, vale sempre apelar a quem teve também essa herança que nunca deixe de a transmitir… 
Vivemos uma fase em que se renovam terminologias e uniformizam conceitos, onde se reforçam unanimismos, se pulverizam fronteiras, se destroem muros de betão e se erguem outros, reforçados com preconceitos e ignorância.
Surgem iluminados com primitivismo estrutural que ajudam a eleger tudólogos ignorantes que decidem rumos sem conhecer horizontes, que percorrem labirintos aguardando por saída urgente quanto impossível e sacrificam futuros porque nada sabem a não ser criar e depender do espectáculo. 
Agravam-se injustiças e segregações, a violência regressa à barbárie, as injustiças tornam-se códigos legalizados, os governos criam encenações para esconder indiferenças e responsabilidades nas sucessivas tragédias humanas nunca previstas, numa espiral de erros que têm como objectivo perpetuar-se e criar “castas/famílias” inatingíveis, duradouras e impunes.
As diferenças agudizam-se, a fome e a indústria da guerra crescem assustadoramente, numa simulação constante e hipócrita, estruturando mitos que mantenham o poder imutável.
A evolução tecnológica atingiu um ponto-chave. Criando a ideia de caos como irreversível, o abandono da educação dos jovens efectua-se com celeridade.
Resta a esperança de que a inteligência artificial potencie com excelência valores que a humanidade conseguiu construir e, assim, contribua para libertar os povos de terríveis destinos, permitindo caminhar para uma nova forma de ocupar o planeta e de alimentar uma utopia de felicidade.
O futebol-jogo tem essa semente, essa capacidade de renovação sistemática, mesmo em condições adversas. Reduzir o espectáculo e enriquecer a humanidade do jogo, o encontro de superação, a energia sem limites, a cooperação como motor não poluente e eficaz.
A inteligência ao alcance de cada jogo, de cada golo, de cada jogada e de cada festejo espontâneo. Agora é tempo de mudar, finalmente.
“O que acontecerá à sociedade, à política, e à vida diária, quando algoritmos não conscientes, mas altamente inteligentes, nos conhecerem melhor do que nos conhecemos a nós próprios?” (Yuval Noah Harari, Homo Deus: História Breve do Amanhã)
A brilhante questão colocada pelo eminente professor de História israelita, quem sabe não terá como resposta que a inteligência artificial vai recuperar as maiores capacidades da Humanidade e valorizar o tesouro das suas heranças mais significativas, entre as quais o “precioso algoritmo” da amizade."

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