"“(…) é na complexidade humana que se encontra o radical fundamento do futebol, para além da técnica, da táctica e da condição física.”
Manuel Sérgio em (José Neto, 2014)
Ricardo Araújo Pereira atinge a genialidade na sua área, mas também em diversos outros temas. No entanto, naturalmente influenciado culturalmente pelo paradigma de pensamento vigente, e à imagem da maioria de nós onde também se incluem outras figuras que atingiram um elevado nível de conhecimento e cultura geral, o humorista português aparenta ter dificuldades em observar os fenómenos de uma perspectiva complexa. Eventualmente ajudará, tendo em conta a própria sátira que faz de si mesmo, que nos momentos em que fala de Futebol e mais especificamente do Benfica, tornar-se, segundo o próprio, aborrecidamente sério perdendo por vezes até a racionalidade. De qualquer das formas, durante a apresentação do livro Schmidtologia de Luís Mateus, apontou que a direcção do clube devia ter antecipado o que sucedeu no PSV Eindhoven e agido. Que alguém deveria ter aconselhado Roger Schmidt a não dar folgas tão prolongadas. E que todos sabem, porque “está cientificamente comprovado” que tal período de paragem é nefasto para as equipas.
Ora bem… isto coloca-nos logo uma questão prévia. Um treinador de futebol não é o responsável técnico pelo processo da sua equipa? Não é contratado como especialista para o planear e operacionalizar? Para tomar as decisões que achará adequadas em benefício do rendimento da equipa? Não será o mais capaz no clube, pela sua formação, experiência, pela sua proximidade e conhecimento da equipa para o fazer? E se alguém participar nesse processo, ou se tomar as decisões pelo treinador, também será despedido se as mesmas resultarem em insucesso?
Através da forma como a equipa joga ligada nos quatro momentos do jogo, Schmidt mostra, no mínimo, uma sensibilidade para o todo complexo que é o ser humano e consequentemente, o jogo de Futebol. Nessa linha de pensamento, o técnico alemão, como os treinadores que subsistem nos mais altos patamares de rendimento (Ruben Amorim e Sérgio Conceição são outros exemplos por cá), dada a sua relação conhecimento / experiência / sucesso, terão necessariamente, nesta fase de desenvolvimento do jogo e do treino que perspectivar o rendimento de forma complexa. Seja de forma consciente ou inconsciente. O que é que isso significa? Que não separam o “físico” do “mental”, que acreditarão que esse rendimento, tal como a fadiga / desgaste serão alcançados por um todo, que na realidade não pode ser desconstruído em partes, apesar de algumas pistas e indicadores que se poderão obter no processo de forma a possibilitar uma intervenção mais precisa.
Portanto, nada disto, nomeadamente o referido – a tal semana de folga, está realmente “comprovado cientificamente” de que será algo prejudicará a equipa. Porque essa “cientificidade” com que o fenómeno é analisado é mutiladora, e como tal, desfasada da realidade. Deste modo, procurando isolar “partes” e as suas relações de um fenómeno complexo, tem tudo para estar errada. O ser humano não é só físico… Aliás, como já dissemos tantas vezes, o físico é só uma forma simplista e redutora de observar o comportamento humano.
“ (…) de acordo com Gaiteiro (2006) podemos afirmar que aquilo a que chamamos “parte” é apenas um padrão numa teia inseparável de relações, não existindo portanto, partes em absoluto.”
(Joaquim Pedro Azevedo, 2011)
Deste modo, a experiência e sensibilidade de Schmidt face ao contexto, leva-o a decidir, naturalmente pesando os prós e contras, que essa tal folga beneficiará mais do que prejudicará a equipa. Tantas pessoas nas mais diversas profissões, mais ou menos desgastantes, não dizem precisar, ou não fazem mesmo um período de férias a meio do ano para se “desligarem” da rotina e stress acumulado? Claro que que todas as actividades são diferentes. Claro que muitas delas não têm a exigência físico-energética que o Futebol contempla. Claro que a decisão tem riscos. Claro que se realizarmos o exercício teórico de isolarmos esses efeitos físico-enérgicos sobre a adaptação até aí alcançada haverá alguma perda. Mas todas as decisões perante um fenómeno complexo têm riscos. A função do treinador é gerir tudo isso, equacionar as oportunidades e ameaças e procurar a optimização do todo. Focando-se, obrigatoriamente no processo. E não no do PSV Eindhoven. No do Benfica. No “aqui e agora” porque os contextos são todos diferentes.
Não há qualquer linearidade ou receita para se obter sucesso desportivo. No máximo haverão ideias e experiências que levaram a tal, mas sublinhamos… sempre em contextos diferentes. Nem sequer, a paixão, o compromisso e o empenho, unanimemente defendidos, são suficientes por si sós para o alcançar.
Falou-se em “bizarria” perante as decisões de Schmidt. Perguntamos se na altura também não foi bizarro quando os treinadores deixaram de ir correr para o pinhal e para a praia e começaram a trabalhar sempre no campo através do jogo ou de fatias do mesmo? Também não foi bizarro quando Pitágoras anunciou a esfericidade da Terra, ou Copérnico que afinal o Sol não girava à volta do nosso planeta? Por outro lado, autores como Peter Tschiene ainda na década de 80, muitos outros depois disso, e por cá, os professores Monge da Silva, Francisco Silveira Ramos, Jorge Castelo entre outros, defendiam de facto esses períodos, a que chamavam “profilácticos”, nas pausas das competições, ao invés do reforço da “carga” que pressupunha o então paradigma instalado, encabeçado por Lev Matveyev.
“(…) o autor (Peter Tschiene, 1985) defende a manutenção de um alto nível de intensidade durante todo o processo de treino, utilizando fundamentalmente os exercícios especiais de competição, realizando um grande número de competições, tendo como objectivo o aumento da intensidade específica do treino. (…) por outra, a introdução de intervalos específicos “intervalos profilácticos” antes do período de treino, para que o atleta se encontre plenamente descansado para o início de um novo período competitivo.”
(Rui Afonso, et al., 2011)
O próprio (Roger Schmidt, 2023) explicou a decisão pelas mesmas razões, ao defender “que é crucial dar dias de folga aos jogadores neste tipo de calendário competitivo, com mais jogos, mais intensos, com intervalos mais curtos. Se conseguirmos dar algumas folgas aos jogadores, isso é essencial”. Também o treinador, professor e metodólogo (Jorge Castelo, 2022) a propósito do mesmo assunto também apresentou concordância com o treinador alemão. Castelo, formador de treinadores, com vasta experiência e obra no treino de Futebol defendeu ser “absolutamente oportuno, porque começaram a época mais cedo. Naturalmente que é uma situação compreensível, pode ser equacionado o tempo de cinco dias, mas é um tempo que parece ajustado, principalmente para os jogadores mais utilizados. Devem ser monitorizados no sentido do cuidado com o que comem e bebem. São profissionais, há sempre um bichinho de treino que poderão fazer algo durante os dias”.
Por outro lado, Peter Tschiene entre outros autores, também abordam o conceito intensidade, porém, não na perspectiva tradicional ilustrada pelas declarações de Ricardo Araújo Pereira. Elevar a intensidade através de exercícios específicos significa preservar nos mesmos a complexidade do jogo. Como o professor Vítor Frade refere… “reduzir sem empobrecer”. Portanto, estamos no âmbito de uma dimensão que não se circunscreve apenas ao físico-energético. Então… se o jogo é complexo, o treino também tem de o ser. E a tal “forma”? Também não o será? Obviamente que sim. A mesma não passa apenas por “estar bem fisicamente”. Recuperemos ideias de José Mourinho nos “longínquos” anos de 2001 e 2005:
“(…) no “flash interview” ouvi falar de quebras físicas e logo dei por mim a pensar que a minha cruzada vai ser mesmo difícil. É que não consigo mesmo que se perceba que isso não existe. A forma não é física. A forma é muito mais que isso. O físico é o menos importante na abrangência da forma desportiva. Sem organização e talento na exploração de um modelo de jogo, as deficiências são explícitas, mas pouco têm a ver com a forma física.”
(José Mourinho, 2005)
“(…) a forma desportiva é “o jogador estar fisicamente bem, inserido num modelo de jogo que ele domina na perfeição. Quanto ao aspecto psicológico, que é fundamental para poder jogar ao mais alto nível, o jogador em forma sente-se confiante e é solidário e cooperante com os seus companheiros e acredita neles. Ora tudo isto junto significa estar em forma e traduz-se em jogar bem.”
(José Mourinho, 2001)
Assim, nesta perspectiva complexa de forma desportiva, será que fará sentido chegar à conclusão que as quebras de rendimento do Benfica de Roger Schmidt sucederam por um eventual ligeiro declínio de rendimento físico-enérgico, ignorando por outro lado os efeitos positivos que as folgas terão trazido a todos? Sim, a todos. Porque equipa técnica e staff também necessitam de estar “frescos” e mentalmente bem para tomarem decisões e actuar. A equipa e o seu rendimento, também são… o todo. Ou seja… todos os que no processo influem.
E neste domínio, não terá, a saída de Enzo Fernandez também contribuído significativamente para a quebra de desempenho? Até à pausa competitiva para o Campeonato do Mundo, o argentino assumia-se como um jogador que claramente acrescentava outro desempenho à equipa. Tanto que, também por isso, acabou por sair por um valor incrível para o Chelsea. E já que estamos a falar do Mundial, na folga de 10 dias dada em Dezembro (a maior de todas), os jogadores com mais tempo de jogo ao momento até estavam ao serviço das suas selecções, portanto, nem sequer usufruíram desse prolongado período de folga. Tal como na folga de 5 dias no final de Setembro e na de uma semana em Março.
São portando diversas as hipóteses e é por isso que estamos perante um fenómeno complexo. Certezas nunca teremos em relação a nenhuma formulação. Nada na verdadeira especificidade do jogo pode estar “cientificamente comprovado” porque não há uma linearidade no processo. Pelo menos através do actual conhecimento científico. E na situação em causa, que decidindo uma semana de folga, irá, com certeza, implicar uma quebra de rendimento. Diferentes contextos, seres humanos diferentes, equipas diferentes, lideranças diferentes, trabalho diferente, formas de jogar diferentes, etc., etc.,… resultados diferentes.
Posto isto, chegamos à principal motivação deste artigo. Sublinhamos que certezas sobre causas para determinados resultados, quer antes quer à posteriori, num processo / sistema complexo como é o caso do treino e rendimento de um equipa de Futebol, não existirão. Contudo, poderemos procurar explicações mais prováveis. Neste sentido, naturalmente acrescentando o mérito adversário (porque as equipas nunca jogam sozinhas e os jogos que protagonizaram a perda de rendimento do Benfica eram de dificuldade elevada para o Benfica), e também a saída de Enzo Fernández, no fundo até suspeitamos que terão sido de facto as pausas competitivas para as selecções que terão estado por trás dos três momentos de menor rendimento do Benfica. Porém… por razões diferentes.
Assim, tendo em conta o que José Mourinho sustentava, se o entendimento de forma no contexto do Futebol, nos planos colectivo e individual é estar a jogar bem no âmbito de determinado Modelo de Jogo, com os jogadores manifestando grande confiança em si e nos companheiros, recordamos os momentos em que o Benfica, nomeadamente até Dezembro, transparecia essa confiança, cooperação, solidariedade, criatividade, proximidade com o sucesso e até, felicidade. No fundo… o nosso entendimento de qualidade de jogo. Uma qualidade que parecia transparecer “invencibilidade” e que nem grandes clubes europeus, repletos de qualidade individual, conseguiram contrariar.
O autor (Pedro Bouças, 2011) descreve que “(…) não há diversão igual aquela que se retira quando se consegue jogar de olhos fechados. Aquela que sentimos quando as coisas saem com um entrosamento tal que deixamos o adversário só a cheirar a bola (…)”. Também (Antonio Gagliardi, 2023), num artigo recente em que aborda uma eventual nova tendência evolutiva do jogo, chamada de “relacionismo”, vai ao encontro deste pensamento explicando que tais ideias de jogo, que como o próprio nome indica têm por base os jogadores e as suas relações, portanto, o seu entrosamento, realçam “as qualidades, características e emoções dos jogadores, especialmente os mais técnicos, também porque ao ligar os jogadores entre si, torna todos um pouco mais felizes”.
Neste enquadramento, a forma, será, do ponto de vista colectivo a equipa, e individualmente cada um dos jogadores, manifestar qualidade ou entrosamento, conduzindo a desempenho e rendimento, tendo sempre em conta o contexto competitivo / adversários que defrontam. Passa por um entendimento ou “linguagem” comum, que simultaneamente os jogadores apresentam em relação ao jogo, antecipando até o comportamento de colegas e adversários. E não conseguimos deixar de relacionar este fenómeno, a uma escala incrivelmente mais diminuta, com o entrelaçamento quântico, o qual, segundo a (Wikipédia, 2023), “permite que dois ou mais objectos estejam de alguma forma tão ligados que um objecto não possa ser corretamente descrito sem que a sua contra-parte seja mencionada – mesmo que os objetos possam estar espacialmente separados por milhões de anos-luz”.
“É sobre esta representação que os Jogadores retiram do contexto que fundamenta o quesito comunicação, dado que é desenvolvido e elevado posteriormente a um carácter de Linguagem quando aplicado sobre condições mais complexas e inteligíveis (Capra, 1996). Esta linguagem se tornará na Linguagem da Equipa [Específica] que é um tanto mais «fluente» quando os Jogadores se apresentam entrosados. Tendo em conta as diferentes línguas da linguagem específica do Jogo de Futebol, esta Linguagem Específica da Equipa se torna um dialecto, específico a esta microsociedade (Teodorescu, 2003), fortalecendo que um aumento exponencial [quando em condições cada vez mais complexas] de códigos, e por sua vez informações deste «dialecto» a ponto de se tornar incompreensível para outras Equipas da mesma linguagem específica. A pegar nos exemplos do Brasil e Espanha ambos países com uma diversidade cultural muito grande, esta compreensão do dialecto colectivo Específico é a mesma maneira que a permanência e valoração que os Cearenses ou Gaúchos [respectivamente dos Estados do Ceará e Rio Grande do Sul] atribuem ao seu dialecto Específico e os Bascos sua língua basca, sendo ambas atribuídas à língua portuguesa e espanhola mas, um tanto Específica que os próprios brasileiros e espanhóis em momentos não a compreendem tão bem quando falado.”
(Rodrigo Almeida, 2009)
Como (José Neto, 2014) descreve, estar em forma é então “despertar para uma inteligência colectiva, subjacente a uma exigente adaptação às múltiplas situações, tão rigorosas quão simples, que a prática deste belo jogo impõe”. No entanto, se visamos o máximo rendimento, este articulação relacional não poderá inibir as qualidades individuais dos jogadores, mas sim ponteciá-las, como também não deverá levar, colectivamente, a equipa a se tornar pouco criativa, mecânica e incapaz de se adaptar a novos problemas. Deste modo, o autor (Rodrigo Almeida, 2009), acrescenta que o entrosamento implica que a equipa consiga jogar em “condições Longe-do-Equilibrio e em níveis de complexidade cada vez maiores” e que a leve “a transcender o seu jogar por um grande nível de acções complexas disponíveis, numa forte relação entre os elementos”.
No fundo, a forma e o entrosamento, significam atingir uma fluidez ou estado de flow em que do caos natural do jogo, entre outras qualidades, emergem ordem, organização, cooperação, solidariedade, ambição, inteligência, criatividade, imprevisibilidade, naturalidade, sucesso e felicidade. Como (Óscar Cano, 2022) sustenta, “os jogadores começam a admirar-se entre eles, começam a ver a correspondência que há entre as capacidades de uns e as de outros. Começam a ver quão necessários são os outros para que eu possa fazer o que sei fazer”. Perante esta perspectiva emocional / sentimental, podemos então estar perante a possível justificação para a tal relação… “quântica”.
O treinador e autor (Jorge Maciel, 2012) refere que “quando tais desempenhos se verificam o que se observa é uma fusão intencional e funcional entre os vários Eus (especificidades) que compõem a equipa e que se concretiza pela fluidez e harmonia com que o todo (Especificidade), o jogar da equipa, se expressa”, concluindo que se trata de um processo “no qual partes e todo se harmonizam engrandecendo-se mutuamente”. É então nesse momento que o todo se torna maior que a soma das partes. E uma equipa entrosada, manifesta as partes (jogadores) no todo (equipa), e o todo (equipa / valores e inteligência colectiva) nas suas partes (jogadores / valores / inteligências individuais).
“O entrosamento
É ao acontecer
o acontecimento,
o fazer…
Cada um dos entrosados
faz-se útil no instante,
e mais do que é aqui chegados…
Se o colectivo é dominante.”
(Vítor Frade, 2014)
Nesta linha de pensamento a aquisição de entrosamento implica tempo e trabalho, para além de qualidade individual, se bem que mesmo dispondo de pouca, a equipa que atinge tal qualidade colectiva, irá esconder alguma das suas eventuais debilidades individuais.
Voltando ao exemplo do Benfica de Schmidt, a qualidade e fluidez que a equipa foi manifestando não foi excepção. Necessitou de trabalho de qualidade, quer no período preparatório, quer no competitivo e tempo de consolidação. Importa clarificar que este trabalho não é algo que se realiza apenas no campo de treino. Naturalmente que o sucesso e as vitórias catalisaram o processo, mas estas também surgiram pelo trabalho realizado. A relação é naturalmente recíproca.
Perante tudo isto… perguntamos: o que sucede objectivamente nas paragens para os jogos das selecções? A integração, normalmente dos jogadores mais utilizados noutros contextos e processos colectivos diferentes, com outras ideias de jogo, com outros líderes, com outros companheiros, com outros objectivos competitivos, noutro contexto de treino, operacional e organizativo. Já para não referirmos as viagens, estágios e desgaste daí decorrente, que são de facto extremamente influentes em todo o processo.
E se essa integração, numa selecção que treine com qualidade, que apresente sucesso e na qual o contexto individual seja favorável ao jogador logicamente já implicará influências e mudanças individuais relativas ao seu contexto no clube, ou seja, uma perda do entrosamento que os jogadores apresentavam antes desse momento no seu clube, imagine-se então nos casos em que o contexto é desfavorável ou de insucesso.
“A minha resposta foi que os jogadores, às vezes, vão para a seleção e alguns não jogam, estão 10 ou 12 dias no hotel, praticamente não treinam e por isso perdem alguma forma e intensidade. O problema não é só nosso, é de todos os treinadores, e mesmo assim ganham jogos. Não uso isso como desculpa.”
(Roger Schmidt, 2023)
Portanto, Roger Schmidt até partilha a mesma opinião. Como seria expectável de um treinador deste patamar competitivo. Os que atingem este contexto, como referido atrás, possuirão uma sensibilidade tal para o processo que compreendem-no enquanto sistema complexo, no qual qualquer micro mudança poderá resultar num macro impacto. E neste caso nem estamos perante pequenas mudanças. As diferenças entre o que os jogadores fazem nos clubes e nas selecções são na maior parte das vezes, enormes. Deste modo, a perda de entrosamento tem que ser previsível. No caso do Benfica, perante a qualidade de jogo manifestada até às paragens, ainda mais.
Estar em forma, o emergir de entrosamento, ou o flow é como uma relação de duas pessoas apaixonadas. Os problemas tornam-se desafios, os envolvidos conhecem-se de “olhos fechados” e antecipam os comportamentos um do outro. Emanam cumplicidade, fluidez e o bem mais precioso que o ser humano pode alcançar… felicidade. E nesse contexto, se as partes e todo “não se harmonizarem engrandecendo-se mutuamente” não haverá “rendimento”, ou seja… não haverá amor e felicidade. E é principalmente por isso, ao reproduzir no seu contexto específico o comportamento humano em geral, que este jogo é tão especial.
“Devemos redefinir o que é ordem e organização. O intercâmbio de posições que vimos outro dia no Real Madrid-Sevilha é de jogadores que não olham para o banco, que não olham para o treinador, estão a fluir, a jogar. Tenho um filho de 17 anos e já sabes que têm um vocabulário distinto do nosso, mas há uma palavra que me fascina: flow. Aí está o futebol, no flow. Quando vês uma equipa a fluir, que não se detém, que ninguém pensa onde tem de estar, que ninguém está a pensar, mas sim a sentir, estão a jogar… isso é imparável. Isso é ordem. O caos, ou o aparente caos, é uma forma sublime de ordem. O que acontece é que se reduziu a ordem ao que podemos controlar, e isso é distinto: isso não é ordem, é controlo. Uma coisa é a organização de um conjunto de jogadores, que é uma organização em si; a ordem está sempre, sempre marcada por algo que não se pode medir, que não se pode atestar, que se intui, que se sente. É algo que a ciência não pode definir, é o flow. Quando estou a treinar, a minha grande preocupação é misturar os jogadores até encontrar esse flow que me permite ser menos treinador, não dar tantas instruções, não ser tão invasivo no dia a dia. Afinal, o treinador converteu-se, infelizmente, numa pessoa que oferece e emite informação. E o treino não é isso, não é isso o futebol. Estamos a comunicar: eu através da palavra, porque não posso jogar, e eles através da conduta e comportamento.”
(Óscar Cano, 2022)"
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