"As lágrimas que lhe escorriam pelo rosto enrugado eram de medo. O "Manuel" - nome fictício - tinha acabado de "descarregar" em Espinho mais de 50 adeptos, de um clube grande, para assistirem a mais um jogo do campeonato com o clube local. Meia hora antes, ainda no Porto, tinha-se enganado na saída e isso valeu-lhe uma navalha encostada ao pescoço e ameaças várias à família.
O dia começara em Lisboa às 09.00 da manhã, à porta do estádio, o ponto de encontro habitual da claque em dia de jogo. Os autocarros perfilaram-se à espera das centenas de adeptos que iam chegando, agrupados de acordo com as várias amizades e tendências que existem dentro da mesma claque. A velha guarda, os mais jovens, os mais bêbados, os skinheads e os líderes da claque, sempre acompanhados por uma espécie de tropa de choque. Álcool, muito. Droga, à discrição. Armas brancas, de todo o tipo.
A viagem de mais de cinco horas até ao norte do país, sempre acompanhada pela polícia, teve de tudo. Áreas de serviço fechadas ao público porque "vêm aí as claques". Bolas de golfe atiradas aos carros que se cruzavam com eles na autoestrada. Elementos que subiam para cima do autocarro para exibir o seu surf a 90 km/hora em plena A1. Não houve um único detido. Não houve uma única queixa. Era tudo normal.
Em 2002, durante vários meses acompanhei, em reportagem, as claques dos três grandes em Portugal. Dentro e fora dos estádios. Durante a semana, nos encontros que têm, e ao fim de semana, nas viagens que fazem para ir aos estádios assistir aos jogos. Assistir é uma força de expressão porque, na realidade, nenhum daqueles adeptos está ali para ver um jogo de futebol. Ao colorido que as claques acrescentam aos jogos, há que juntar as cenas de pancadaria, o vandalismo, os impropérios que gritam contra todos e qualquer um que vá vestido com uma cor diferente. Seja quem for, membros de uma claque rival ou famílias com crianças pela mão, vai tudo à frente.
Na maior parte dos casos, a polícia actuou com inteligência. Fez as demonstrações de força necessárias, mas foi muitas vezes discreta quando era preciso actuar sem atirar ainda mais gasolina para uma fogueira que já estava muito quente. Vi vários adeptos a serem detidos. Não vi nenhum a ser julgado e punido. Já nem digo preso, mas pelo menos a ser impedido de voltar a entrar num estádio. Cheguei a ver alguns a saírem algemados de um estádio, para me reencontrar com eles, uma semana depois, no jogo seguinte.
Tudo isto - e o muito mais que já aconteceu no futebol em Portugal - leva-me aos verdadeiros culpados da chamada violência no desporto. E não são (apenas) as claques. São todos os que as mantêm e as alimentam. São os que permitem que esta violência perdure ao longo dos anos, para depois surgirem aos olhos da opinião pública - quando a gravidade é impossível de ignorar - chocados, indignados e a sacudir toda e qualquer responsabilidade. A começar pelos dirigentes desportivos.
As direcções dos clubes são as principais responsáveis. Pelo apoio, tantas vezes encapotado, que dão às claques, elas próprias tropas de choque dos presidentes. Pelo péssimo exemplo que dão todos os dias, cada vez que abrem a boca com discursos de ódio que fomentam a violência. E pelas responsabilidades que têm nas decisões - ou a falta delas - tomadas pela Liga de Clubes e pela Federação Portuguesa de Futebol.
A Liga e a Federação são meros verbos de encher, no que toca a combater a violência no desporto. Têm estatutos, regras, conselhos de disciplina, mas como a sua existência depende dos clubes e os clubes têm à sua frente os maiores culpados pela violência no desporto, está tudo dito. É por isso que nunca houve um estádio vazio como punição. É por isso que as multas são ridiculamente baixas e, na maior parte dos casos, nem sequer são cobradas porque batem na parede e voltam para trás. É por isso que, apesar dos inúmeros casos de violência, dos comportamentos antidesportivos, dos feridos, das mortes, nunca houve em Portugal um clube que fosse severamente punido pelo comportamento dos seus adeptos.
Bem sei que há quem encontre uma outra explicação. O futebol, que sempre foi um desporto de milhões, é hoje um desporto de biliões. E o dinheiro fala sempre mais alto. Podem a Liga ou a Federação arriscar-se a aplicar uma punição severa a um clube que o faça perder milhões de euros e arriscar-se a ter esse clube de fora? Ou já ninguém se lembra que um dia o Benfica chegou a admitir jogar o campeonato espanhol, como retaliação?
Por fim, o poder político, que sempre evitou meter-se com o futebol, a não ser para ir ver jogos às tribunas de honra. Quando a situação atinge uma gravidade e um mediatismo que é impossível de ignorar, a política responde, tipicamente, com a mesma receita de sempre: mais leis e mais entidades. O que, na prática, significa fingir que se está a fazer muita coisa para deixar tudo igual ou pior. A prometida Autoridade para a Violência no Desporto é a prova evidente disso. O mesmo António Costa que ajudou a acabar com ela promete agora ressuscitá-la, como resposta aos acontecimentos de Alcochete. Não o fez quando Fernando Gomes, presidente da Federação Portuguesa de Futebol, ficou a falar sozinho, há sete meses, sobre a urgência de se tomarem medidas para combater a violência crescente no desporto em Portugal. Foi agora que um grupo de vândalos entrou num recinto desportivo, onde vivem crianças, para agredir uma equipa de futebol profissional. Foi agora e porque o tempo mediático o obrigou a dizer alguma coisa.
As lágrimas já secaram na pele engelhada do "Manuel", que se prepara para esperar 90 minutos cá fora pelos clientes que ainda tem de transportar de volta para Lisboa. Sabe Deus em que estado vêm lá de dentro. Sabe-se lá de que forma é que o resultado do jogo pode influenciar os mais de 300 quilómetros que ainda lhe faltam fazer até acabar a jornada de trabalho.
"Se eu fosse a si, ia-me embora e deixava-os aí", disse-lhe eu.
"Está doido? Eles sabem onde eu trabalho e descobrem rapidamente onde eu moro. Deixe lá isso, vá é você embora que, se eles perdem, isto pode ficar feio." "
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