"Tal como na guerra, também no futebol existe um simbolismo e um léxico guerreiros, com as suas máscaras, os seus cânticos, os seus hinos e, sobretudo, as suas claques, sempre agressivas e tantas vezes violentas, a destilarem ódio e desprezo pelos inimigos
O futebol deixou de ser uma mera competição desportiva. É hoje um negócio de muitos milhares de milhões, povoado por gente que o envenena, sobretudo fora das quatro linhas, mas também dentro delas. Instalou-se nele um sistema corrupto, criminoso e bem rodado que o inquina. Como é o caso, por exemplo, das redes de apostas clandestinas, com ramificações por todo o mundo onde há campeonatos de futebol profissional, redes essas que chegam a gerar ainda mais dinheiro do que o tráfico de droga. Paralelamente, a violência das claques, hooligans e ultras, cuja vida gira em torno dos clubes e são financiados sorrateiramente pelas suas direcções, é outro dos factores que envenenam o negócio da bola.
Curiosamente, neste comércio de “activos” e nesta indústria do “espectáculo” tão lucrativos, nem sequer são os clubes de futebol que enriquecem e acumulam as grandes fortunas, mas sim todos aqueles que, sobretudo nos bastidores do futebol, especulam e vivem à custa dos clubes. Refiro-me, por exemplo, ao mercado das transferências multimilionárias, que enriquecem muita gente dentro e fora das quatro linhas, mas não propriamente os clubes que deveriam beneficiar com elas. E assim se perceberá melhor a razão pela qual, na maioria dos casos, os clubes não compram jogadores idóneos, acumulando nos seus plantéis vários futebolistas medíocres e pernas-de-pau – como bem o demonstraram Simon Kuper e Stefan Szymanski, em 2010, no livro intitulado “Soccernomics” (da Nation Books), que é já um clássico em qualquer boa biblioteca sobre o futebol.
O fanatismo e a cegueira clubística da generalidade dos adeptos do pontapé- -na-bola – e não apenas das claques financiadas pelos próprios clubes –, acicatados e assanhados por dirigentes ignaros e irresponsáveis, são outros dos factores malignos que contribuem para infectar e inflamar o futebol, poluindo o ambiente que envolve o espectáculo e tornando tantas vezes perigoso estar sentado nas bancadas de qualquer estádio a fruir de um jogo que deveria proporcionar prazer, mas que acaba por alimentar o ódio entre clubes rivais, que há muito deixaram de se considerar adversários e passaram a agir publicamente como inimigos figadais.
Será que – parafraseando a célebre fórmula de Carl von Clausewitz no seu estudo clássico intitulado “Da Guerra” – “o futebol é a continuação da guerra por outros meios”? No início da década de 1960, o grande sociólogo e politólogo francês Raymond Aron comparou o futebol e a guerra numa famosa evocação – publicada nas páginas do semanário “L’Express”, de que ele era então o director político – da inesperada e surpreendente vitória da selecção de futebol da Alemanha sobre a admirável selecção da Hungria na final do Campeonato do Mundo de 1954. Para Aron, fino conhecedor do jogo de futebol e das suas regras, tratou-se de uma “vitória crucial, que ultrapassou o estrito quadro desportivo”, dado que, simbolicamente, o êxito da Mannschaft permitiu que a Alemanha regressasse ao “grande concerto das nações”, dez anos após a sua derrota total perante os Aliados.
De facto, tal como na guerra, também no futebol existe um simbolismo e um léxico guerreiros, com as suas máscaras, os seus cânticos, os seus hinos e, sobretudo, as suas claques, sempre agressivas e tantas vezes violentas, a destilarem ódio e desprezo pelos inimigos, e com nomes bárbaros com conotações fascistas e nazis. Paralelamente a estas guerras promovidas pelas claques, que chegam a provocar vítimas mortais, de-senvolve-se também a guerra das transferências, sobretudo as multimilionárias, que pesam de forma decisiva nos orçamentos anuais dos clubes e alimentam, inevitavelmente, os seus défices, que chegam a ser astronómicos. Há quem diga, e eu concordo, que o futebol é um espelho da sociedade em que se insere. Para ganhar, é preciso ter mérito e alguma sorte, mas também haver uma certa injustiça e, cada vez mais, bastante demagogia, corrupção e batota.
Num célebre ensaio intitulado “Os jogos e os homens – A máscara e a vertigem”, publicado em França em 1958 e em Portugal em 1990 (pela Cotovia), o seu autor, Roger Caillois, referindo- -se à noção de “jogo” em geral, e não especificamente ao futebol, escreve que “há casos em que os limites se esfumam, em que a regra se dissolve” e as “concorrências ideais” se desfazem mergulhando num “real sempre problemático, equívoco, emaranhado e variado onde os interesses e as paixões não se deixam facilmente dominar, mas a violência e a traição são moedas correntes”. Aplica-se como uma luva ao futebol actual, que já não é competição desportiva e em que o “espírito do jogo” se desvanece para dar lugar a “jogos de imitação e de ilusão” que “prefiguram as religiões do espectáculo”.
Hoje há comportamentos e atitudes que deixaram de ser pensáveis no futebol, sobretudo no que respeita aos dirigentes dos clubes, às claques organizadas e financiadas por eles e ao fanatismo instilado nos adeptos em geral. Como afirma Caillois, o jogo pressupõe, obviamente, a vontade de ganhar através da utilização plena dos recursos à disposição e da exclusão das jogadas proibidas. Mas exige mais: a necessidade de ser cortês com o adversário e de o enfrentar sem animosidade. É preciso aceitar antecipadamente uma eventual derrota, o azar ou a fatalidade, admitindo-os sem cólera nem desespero, porque quem se zanga ou lamenta é quase certo que cai logo em descrédito. Ora, tudo isto é impensável no futebol actual, transformado num negócio em que se ganham e se perdem muitos milhares de milhões. Ninguém aceita que o que foi ganho pode ser perdido e que está mesmo, por natureza, destinado a ser perdido. E ainda menos se admite que a forma como se vence é mais importante do que a vitória em si. Para dirigentes, claques e adeptos fanáticos, está totalmente fora de causa aceitar a derrota como mero contratempo ou celebrar a vitória sem embriaguez nem vaidade.
Há, finalmente, esse sentimento de impunidade segundo o qual não se toca num clube a não ser de mansinho e nunca se lhe deverão aplicar castigos exemplares ou radicais. Ora, tal sentimento de impunidade só é agravado pela promiscuidade escandalosa que existe entre dirigentes dos principais clubes de futebol e muitos dos principais dirigentes políticos. Confesso que é sempre com um sentimento de vergonha que constato, na TV, quão solenemente são recebidos num restaurante da Assembleia da República, para um almoço ou jantar de confraternização verdadeiramente patética, os presidentes dos principais clubes de futebol por deputados dos principais partidos, tão unidos no apoio incondicional aos clubes de futebol da sua predilecção. Acredito, muito sinceramente, num futuro radioso para a corrupção e a violência no futebol português. Tal como no futebol europeu e no futebol mundial."
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