"1943 - na véspera do Ano Novo, os jogadores do Benfica confiavam as suas crenças, os seus receios, as suas fezadas. Algo de muito curioso, que reaviva a memória de um tempo que não volta mais...
Há coisas curiosíssimas que, de tempos a tempos, nos caem no colo, assim de surpresa. E nada como uma boa surpresa para nos entretermos, sobretudo numa altura como esta, em que, de repente, a vida parece ter começado a correr à desfilada em direcção a mais um ano novo que não tardará, como os outros, a ficar velho.
Reparem nesta. Uma lista de superstições de todos os jogadores da equipa do Benfica do ano de 1943. Vou avançando com ela. Não necessita de grandes comentários. É, ao fim e ao cabo, um entretenimento. Desfrutem-no.
Rogério: 'Não gosto de ver cães a entrar em campo. É mau sinal. Por outro lado, se olho para a assistência e vejo uma espectadora loira e galante a torcer pelo Benfica, é certo que jogo melhor!'
Gaspar Pinto: 'Não tenho pressentimentos. Entro em campo para ganhar, e ninguém me tira essa ideia da cabeça. Mas gosto de jogar com chuva. Sentir a relva molhada e pesada é como se me desse mais força'.
Peyroteo que o diga. Gaspar Pinto era um daqueles defesas que faziam com que o cavalheiro de Humpata, violino do Sporting, perdesse as estribeiras.
Albino: 'Gosto de ter os meus amigos nas bancadas. Dá-me conforto e energia. Se há um director do clube que me recusa um convite para gente que me é próxima, fico chateado. E demoro a esquecer a contrariedade'.
Valadas: 'Às vezes por distracção, calço primeiro a bota do pé esquerdo. É uma chatice. Sinto logo que as coisas não vão correr de feição. Por outro lado, se, no primeiro remate que faço à baliza do adversário, a bola sai ligeiramente ao lado ou obriga o guarda-redes a uma boa defesa, fico cheio de moral: já sei que os seguintes vão dar em golo'.
Prometi não me estender em comentários, mas esta resposta merece um: o que será que Valadas sentia quando o primeiro remate dava logo golo? Não acredito que lhe desse azar...
Francisco Ferreira: 'Só preciso de uma coisa para me sentir confiante e nada tem que ver com a sorte ou com azar. Necessito de entrar em campo à frente da fileira dos meus companheiros. E de levar a bola na mão ou debaixo do braço. É uma exigência!'
Exigência justa para um dos que foram um capitão absolutamente exemplar.
Até um funeral metido ao barulho
Prossigamos o relambório. Que tem chiste, não há dúvidas.
Manuel da Costa: 'Eu preciso de ser o último a entrar em campo, depois dos meus colegas todos. Mas não crio fantasmas na cabeça. Se isso não acontecer, não jogarei pior. É apenas uma preferência, não um fetiche'.
Jordão: 'O que eu quero mesmo é ver as bancadas cheias de moças bonitas. Alegra-me a alma. Elas dão ao espectáculo um ambiente de graça e de alegria. Quando entro em capo, passo os olhos em volta. Se vejo um grupo de raparigas, fico feliz. Agora, coisa que me estraga o dia e o jogo é tomar e pequeno-almoço frio. isso irrita-me'.
Pires: 'Se o primeiro passe ou remate não me sai bem, fico a matutar nisso e custa-me a recuperar a concentração. Preciso de um esforço mental acrescido. Por outro lado, se há um adversário que me carrega em falta no início do encontro, ganho uma gana suplementar. Fico doido por me ir a eles, cheio de vontade'.
César Ferreira: 'Se no caminho para o estádio me cruzar com um funeral, é certo que ganharemos. É uma fé. Ao contrário de muitos outros, não penso que traga azar. A infelicidade fica toda no cortejo mortuário'.
Julinho: 'Não gosto nada quando os meus colegas cantam no balneário, antes do jogo. Dá-me uma sensação de facilitismo. A alegria não pode ser antecipada. Tem de ser ganha e merecida. Por mim, obrigava-os todos a ficarem em silêncio. Concentrados. É sinal de que vamos ganhar o jogo!'
Teixeira: 'Não sou supersticioso. Nunca fui! Mas prefiro jogar contra equipas de maior categoria. Aborrece-me defrontar adversários fracos, que dão pouca luta. Ah! E gosto de caras bonitas nas bancadas. É sempre agradável jogar com umas moças simpáticas a ver-nos'.
Martins: 'Só preciso de uma coisa - antes do jogo, encontrar o sr. Manuel Condeixa! É um grande, grande amigo e proprietário da Casa da Lotarias Condeixa. Olho a toda a volta a tentar perceber onde está sentado. Se não o encontro, é certo que perdermos'.
Nelo: 'Loiras! Mas loiras clarinhas. Se topo uma quando entro em campo, fico com a certeza de que iremos ganhar. Já as morenas, por mais bonitas que sejam, não me garantem nada. Desculpem-me a franqueza. É mesmo assim!'
Pois: há, de facto, coisas curiosas, não é?
E que merecem que lhes prestemos atenção. Logo agora que o ano velho vai dar lugar a uma no novo. Esperemos que melhor para todos do que o anterior...
É um desejo."
Afonso de Melo, in O Benfica
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