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quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Os coices assassinos de Albano

"Tarzan Taborda virava-se de costas para o adversário, mergulhava para o tapete, e esticava as pernas acertando-lhe com os pés

Entre Santa Camarão e Tarzan Taborda, o meu coração balança. Claro que o Santa, Homem Montanha de Portugal, tinha aquele toque carinhoso de usar sapatos feitos à medida para o seu pé número 49 e meio e a romântica relação com as mamas grandes da Ilda Fernandes, Rainha dos Mercados. Por seu lado, Tarzan não é nome que se deixe passar sem um sorriso de ternura, pouco importa se se chamava, na verdade, Albano Taborda Curto Esteves. Ficou Tarzan e nada mais, qual Johnny Weissmuller qual diacho, qual Edgar Rice Burroughs, qual «me Tarzan you Jane», o outro até era Johann Weißmüller, nascido nos confins do Império Austro-Húngaro, numa terriola chamada Szabadfalva (Freidorf também vale), que agora até pertence à Roménia.
Nesta coisa da luta livre, mais livre é impossível. Bem sei que há muita gente que franze o nariz delicado, é tudo uma grande aldrabice, como diria a Beatriz Costa, aliás Alice, filha do alfaiate Caetano, aliás António Silva, na Canção de Lisboa, rosando os lábios de açúcar pilé, e acha que os títulos europeus e mundiais do Taborda valem menos do que o seu segundo lugar no concurso de Mister Europa, e os seus papéis de duplo de Alain Delon, John Wayne ou Robert Mitchum, este um canastrão de alqueires bem medidos que por tudo e por nada se metia em cenas de pancadaria de criar bicho.
Convenhamos que há uma aura baça de fumo e um penetrante cheiro a álcool e perfume barato nas imagens do Coliseu e do Parque Mayer que ficaram para sempre encaixadas no imaginário lisboeta como se fossem em filmes super-8. Recordo-me do cartaz: ‘Tarzan Taborda contra meio mundo!’. E por baixo: ‘Sete-fortalhaços-sete!’.
Nunca pontos de exclamação foram tão bem empregues na história da literatura portuguesa. Ah! Pois. Não venham agora dizer que aquilo não era literatura e da boa. Melhor só nos livros de cowboys: «Entre os mortos havia um que respirava – Texas Jack!».
Havia também Manuel Grilo, o homem-que-só-apanhava. Não sei se era uma opção ou se lhe estava na massa do sangue. Sangue em ampolas, claro. Escondidas nos calções e tiradas à sorrelfa para avermelhar os supracílios, os narizes, as orelhas, como se os golpes tivessem sido autênticos, assassinos. Diz-se que Barrigana, o Domingos, irmão do Barrigana das balizas, usava uma bexiga de porco e, de repente, desatava a vomitar sangue como se umas trinta úlceras lhe tivessem rebentado ao mesmo tempo no duodeno, o que fazia o povo gritar de encantada preocupação. Falsa, também, claro está!
Nessa noite, no Coliseu à pinha, Tarzan Taborda teria de haver-se com uma avalancha de carne. Para não fugir à literatura, direi que o campeão mexicano se chamava Conde Maximiliano, e ainda faziam fila para se baterem com o fortalhaço de Aldeia do Bispo, Penamacor, um tal de Índio Blas Vega, o chinês Amet-Chong, o argentino Nino Mercuri, o belga Jeff Awweert e o misterioso Máscara Negra que ninguém fazia ideia de como tinha aparecido por ali, na Rua das Portas de Santo Antão. 
Acrescento, por vir a propósito que, em tempos que já lá vão, a rua servia de mostruário para os lutadores, tal como acontecia com os antigos gladiadores de Roma. Os empresários passeavam a mercadoria na esperança que os transeuntes se deixassem encantar pelo acervo de músculos ou pelo sorriso que não tardaria a ser estilhaçado por algum punho menos contemplativo. A malta interessava-se, apalpava um bícepe aqui e ali, deixava-se convencer a comprar o bilhete. Havia um belga, Henri Herd, ou melhor, Constant Le Marin, discípulo de um compatriota seu, Constant Le Boucher, o Açougueiro, que fez furor de São Domingos a São José graças à sua passada elegante de antigo herói da I Grande Guerra e vencedor inequívoco do francês Paul Pons, O Colosso, depois de quatro horas de combate ininterrupto em Buenos Aires, em 1910.
Tarzan Taborda tinha um truque muito seu: virava-se de costas para o adversário, mergulhava para o tapete, e esticava as pernas acertando-lhe nos queixos com os pés como se fosse um coice de mula. Em três tempos deu cabo do Índio Blas Vega, um cherokee que entrara no ringue com um archote aceso na mão evocando o grande Manitu e o apagou com uma lambidela de fazer inveja a qualquer labrador. Aí, até as senhoras nas frisas arrepelam os cabelos. Um gritou: «O que tu tens é fome!». Outros atiram-lhe moedas de tostão. Ouvem-se uns assobios dispersos, à laia de aviso de que não pode haver lugar a brincadeiras, e o extraordinário Taborda, que chegou a ir a Bagdad lutar para delírio de Saddam Hussein, virou as suas atenções para a próxima vítima, o espanhol Joy Adel, um gordalhão cheio de ademanes que não aguenta a primeira diaba sem recorrer à ampolazinha mágica que o pôs a sangrar das narinas. Contava o cronista que um senhor de casaca suspirou desiludido: «Este nem para chulo serve...»."

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