"Se recordámos os heróicos confrontos de Amesterdão frente ao Ajax, num coberto de neve, vamos dar uma vista de olhos à segunda mão, no Estádio da Luz onde Johan Cruyff desafiou o brilho das estrelas.
A ceifeira da morte é sinistra e a sua detestável gadanha não pouca ninguém.
Ainda esta semana levou consigo Fernando Mendes, um dos mais educados senhores da história do Futebol português, gente de uma correcção ímpar e de uma forma de estar na vida que cada vez se vê menos há medida que o tempo passa. Fernando Mendes estava para além de ser um adversário: era um companheiro, um homem de princípios e convicções. Por isso haverá para ele - e para outros da sua estirpe - lugar de destaque na admiração daqueles que vão vendo a dona da pensão da vida trancar portas atrás de portas sem nunca olhar para trás.
Mas eu teimo em olhar para trás, como sabem os que vão tendo a paciência de me ler. Teimo em trazer para o presente cabouqueiro das traves mestras dos dias de hoje.
Na semana passada, recordei aqui uma das grandes derrotas de Johan Cruyff contra o Benfica num Estádio Olímpico de Amesterdão coberto com um manto de neve que enregelava os ossos e fazia estalar as articulações.
A vitória dos 'encarnados' foi tão convincente que se levantaram novas esperanças quanto à reconquista da Taça dos Campeões Europeus. 3-1 era uma vantagem bonita, arredondada, confortável. Mas fora apenas um jogo. Outro estava marcado para o Estádio da Luz. E na Luz ao contrário do que acontecera em Amesterdão, houve Cruyff e o talento inigualável de Cruyff.
O Benfica entrou na Luz confiante como nunca. O resultado da primeira mão dava uma margem de conforto que não era minimamente desprezível. Talvez por isso os primeiros minutos tenham sido imperiais.
Prometia-se um tempo de espera. A espera de um golo 'encarnado' que rasgasse as dúvidas como quem rasga um papel velho e o lança para o cesto dos documentos sem valor.
Mas, repito e repetirei as vezes que foram necessárias: nessa noite da Luz havia Cruyff. E Cruyff também sabia ser único, como o sabem todos os jogadores irrepetíveis.
Duas vezes Cruyff !!!
Por isso, aos dez minutos de jogo, o público da Luz assistiu aos momentos mágicos que se devem guardar para sempre na aldeia branca da nossa memória.
Dois golos - duas vezes Cruyff.
Aparecia pelo lado esquerdo, invariavelmente pelo lado esquerdo. Era belo, era plástico, era jovem e atlético como Ajax, o padroeiro do seu clube, quase tão imbatível como Aquiles (embora este tivesse problemas sérios no calcanhar), e deslizava por entre a defesa do campeão português com a leveza que o levou à loucura.
Era,por isso, um Ajax enlouquecido às ordens de um Cruyff insaciável.
A esperança é ingrata, como sabem.
Muda de lado de um momento para o outro.
O Benfica que entrara em campo convencido de mais uma das suas infinitas proezas internacionais, mostra-se agora perdido e sem ideias.
Os rapazes de Amesterdão são donos da bola e do jogo.
Kaizer, o grande Kaizer, faz o três zero ao passar da meia-hora. Prevê-se um desastre homérico. E não se percebe onde aquele Benfica fragilizado e sem ideias pode ir buscar forças para resistir e sobreviver à tempestade desatada de um adversário formidável.
Aguentou. Coluna, Jaime Graça, Simões e Eusébio batem-se contra o destino tal como o haviam feito tantas vezes na sua carreira. Com o tempo equilibram os acontecimentos. Esforçam-se na busca dos golos que lhes permitiria ainda passar à fase seguinte.
José Torres faz o 1-3 a vinte minutos do final. Tarde, contudo. Excessivamente tarde.
Um dique fora erguido em redor de Eusébio e do seu Futebol em ondas. Impedia-lhe a progressão e as possibilidades de remate. De Amesterdão a Lisboa, Rinus Michels aprendera a lição.
Ambas as equipas estavam condenadas a um jogo de desempate em Paris. Outro confronto de estalo, a exigir prolongamento no final dos 90 minutos. Aí Cruyff voltou a ser Cruyff e desfez a igualdade. Danielsen tratou de colocar o resultado em 3-0.
Havia novos senhores na Europa, eram holandeses e acreditavam em mitos gregos."
Afonso de Melo, in O Benfica
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