"Alguém pode ficar indiferente à forma notável como Jesus, atirado ao tapete há um ano, carregou a cruz e sobreviveu?
AINDA na digestão eufórica da vitória encarnada sobre o FC Porto, eis o que ouvi de uma conversa entre dois benfiquistas, um mais crente do que o outro.
- Já viste, pá, que podemos assistir à ressurreição do Jesus logo num Domingo de Páscoa e festejar o 33.º título? Sabes com que idade morreu Jesus Cristo? Com 33 anos. Não achas que é um sinal?
- Um Sinal de quê, pá?!
- Se não é coincidência só pode ser um sinal.
- Realmente parece demasiado para ser mera coincidência. Ressurreição de Jesus um ano depois de quase ter estado morto pelos benfiquistas? E logo num domingo de Páscoa? E ganhando o campeonato 33? No ano em que dissemos adeus ao Eusébio? E ao Coluna? É pá, até estou a arrepiar-me...
- Então, não achas que é um sinal?
- Mas um sinal de quê, pá?
- Um sinal de que os astros estão finalmente com o Benfica, pá. Até já conseguimos ganhar um jogo decisivo ao FC Porto...
- Lá isso é verdade. E acho mesmo que ganhámos muito mais do que um jogo. Ganhámos muito mais do que uma eliminatória.
- E não achas então que a possível ressurreição de Jesus logo num Domingo de Páscoa só pode ser um sinal?
- Espero que seja sinal de que o Benfica ganhará este ano tudo o que perdeu o ano passado. E se assim for, converto-me.
Por estes dias, esta é uma das conversas mais correntes entre os benfiquistas, justificadamente felizes com a carreira desportiva da equipa, agora na final da Taça de Portugal, na meia-final da Liga Europa e a um passo - a uma vitória - de conseguir o 33.º título de campeão nacional.
Ao bom futebol da equipa, à qualidade indiscutível dos jogadores e à determinação do treinador, parecem os benfiquistas ver agora agora alguma razão para lhes juntar o lado místico que tantas vezes ajuda a explicar... o inexplicável.
Mais ou menos dados a essas coisas da crença, da fé ou da metafísica, a verdade é que não serão poucos os benfiquistas que sentirão um inexplicável sinal mágico numa semana de reencontro com a chama imensa, não deixando, ainda assim, de atribuir ao presidente, ao treinador e aos jogadores a responsabilidade maior por aquela que poderá ainda vir a ser uma época de intenso sucesso.
TEM aquele benfiquista razão ao afirmar ter ganho o Benfica muito mais do que um jogo, quarta-feira, ao eliminar o FC Porto.
Ganhar ao FC Porto ganhou o Benfica de Jesus por 1-0 na 1.ª volta do campeonato que conquistou em 2010; por 2-0 na 1.º volta deste campeonato que está à beira de poder voltar a conquistar quatro anos depois; e por 2-0 na 1.ª mão dos quartos de final da Taça de Portugal de há dois anos, vindo depois a ser eliminado na Luz, por 3-1.
Ou seja, sempre que se tratou de levar a melhor sobre o FC Porto no chamado jogo decisivo o Benfica de Jesus falhou. Falhou nos jogos com os portistas nos últimos três campeonatos (2010/11, 2011/12 e 2012/13) e tinha falhado sempre que se tratou de jogos a eliminar. Até quarta-feira.
E por isso o jogo desta quarta-feira era, para o Benfica, muito mais do que um jogo e muito mais até do que uma eliminatória, e mais até do que o último passo para mais uma final da Taça.
VENCER, desta vez, o FC Porto representava para o Benfica vencer o fantasma de não ser capaz de derrubar o FC Porto por KO.
Passe o exagero da expressão, não deixa de ser adequado dizer-se que no confronto com o FC Porto, nos últimos três anos, sempre que se tratou de matar ou morrer... morreu o Benfica, excepção feita à meia-final da Taça da Liga, em 2012, que os encarnados acabaram por ganhar aos portistas por 3-2, depois de em 2010 já terem batido os dragões na final da prova, por 3-0.
Mas, enfim, sempre a tal famigerada Taça da Liga, que pareceu nunca compensar os adeptos benfiquistas das tremendas desilusões dos três últimos campeonatos... a suprema das quais, evidentemente, chegaria em forma de golpe final na última jornada da Liga passada.
Resumindo, o Benfica de Jesus, mas também o Benfica de outros treinadores, a bem da verdade, vinha carregando há anos o estigma de ser incapaz de vencer o FC Porto por KO.
O mérito de o ter conseguido quarta-feira, numa emocionante partida de futebol, parece indiscutível e acabou, no fundo, por dar nova prova de que o Benfica é, agora, a melhor equipa portuguesa, a que joga o melhor futebol, a que tem jogadores em melhor condição táctica, técnica, física e psicológica, e a que justifica, por tudo isso, o destacado 1.º lugar na Liga, a final da Taça de Portugal, e a presença nas meias-finais das outras duas provas em que compete.
Em bom rigor, o Benfica fez uma grande época em 2012/13 e volta a fazer outra grande época em 2013/14. Claro que o rigor cai por terra porque o Benfica venceu zero o ano passado e voltaria a cair por terra agora se o Benfica viesse eventualmente a não ganhar de novo qualquer título.
Claro que desta vez, e como as coisas estão, dificilmente algum benfiquistas deixará de acreditar na conquista do título de campeão já este Domingo, quando faltar pouco para as oito da noite.
OS erros do passado parecem ir longe, a equipa revela um foco tremendo no que precisa realmente agora de fazer para chegar ao sucesso dos títulos, como aliás bem claro ficou quarta-feira, num épico triunfo sobre um FC Porto que já deve saber muito bem o que lhe falta para retomar o caminho competitivo dos últimos largos anos.
Mas da mesma maneira que não será fácil ao FC Porto recuperar o ADN perdido nas muito discutíveis opções para esta época, também o mais difícil será já ao Benfica devolver aos adeptos a alegria do titulo; o mais difícil será mesmo conseguir com que esta época não seja, no fundo, a mera repetição do que foi a primeira época de Jesus - uma época fantasticamente só.
Não cabe aos adeptos pensar, agora nisso, nem lhes cabe fazer contas, sejam eles adeptos do Befnica, do FC Porto ou do Sporting.
A paixão nunca é um número e aquilo que o futebol profissional do Benfica testemunhou, mais uma vez, Domingo passado em Aveiro não deverá deixar nenhum observador indiferente e muito menos deixará algum profissional encarnado sem se sentir tocado.
É um dos aspectos notáveis da época encarnada a força com que os adeptos voltaram a reerguer o apoio à equipa depois do que sucedeu em 2013, tal como notável não pode deixar de ser esta ressurreição de Jesus, um homem atirado ao tapete há um ano e duramente submetido a um castigo emocional a que poucos, certamente, teriam sobrevivido, capaz de mostrar, afinal, do que é verdadeiramente capaz do ponto de vista psicológico e da determinação com que, de forma obstinada, profissional e destemida, voltou a desafiar o destino. Nem sempre com as melhores atitudes, nem sempre dizendo as coisas mais acertadas, nem sempre com as mais nobres intenções, mas sempre, ou quase sempre, de forma genuína e confiante.
DE repente, o benfiquismo parece recuperar todo o sentido do que escreveu há quatro anos, sobre o Benfica, o mágico Javier Saviola, esse enorme talento argentino que celebrou um título na Luz, no livro autobiográfico que dedicou ao pai.
«Ao longo da carreia, encontrei vários tipos de adeptos. Dos fanáticos de Sevilha, aos 'lou profile' do Mónaco. Mas como também já referi, não encontrei nenhuns com a genuína paixão dos benfiquistas. É quase inexplicável. Sente-se olhando fundo nos lhos das pessoas. Sente-se nas manifestações espontâneas nas ruas, nos restaurantes, no estádio. Sente-se nas cartas que recebemos (...). Quem já passou pelas mesmas situações - em países diferentes, com clubes diferentes e adeptos diferentes - sabe distinguir claramente os sentimentos. Aqui é distinto. Garanto!(...)
O Benfica é um clube muito especial. Não digo isto para ser politicamente correcto ou conquistar o coração de quem quer que seja. Aliás, antes de vir para Portugal, posso confessar que desconhecia em absoluto esta grandeza. O Benfica foi-me conquistando e convencendo com factos. É daqueles clubes que te surpreende dia após dia.
Quando conto isto a alguns colegas de outros clubes eles estranham. Como é que alguém que passou pelo Real Madrid ou Barcelona se pode surpreender? A explicação é simples. O Real ou o Barça são como teatros gigantescos e nós, os jogadores, somos os actores principais de uma grandiosa encenação. No Benfica é outra coisa, mais ligada ao sentimento, ao povo, à paixão. Vem das raízes, é genuíno.
Os adeptos conseguem transmitir-nos exactamente o que lhes vai na alma. Sentimos essa força na pelo. (...) Cheguei a dizer ao Jorge Jesus: 'Mister, isto nem no Madrid!'
O mesmo já tinha acontecido num estágio na Suíça. No meio das montanhas, num local que nem vem no mapa, havia centenas de benfiquistas a apoiar-nos. Após o primeiro treino, liguei à minha mãe e disse-lhe: 'Mãezita, este clube é impressionante!'»
Jesus também já o sabe."
João Bonzinho, in A Bola
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