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segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Continua a estar tudo na literatura!


"Comentava o Cully de Irwin Shaw (1) para o Storr, abanando a cabeça: “ – Há muitos miúdos com talento, mas são de um estofo diferente. Não trabalham, não treinam, não fazem sacrifícios. E, para ser franco, não os censuro. Que tenho eu para mostrar que vale a pena? As minhas pernas têm levado tanta porrada que preciso de vinte minutos para me levantar da cama, de manhã. Três operações aos joelhos. – Mexeu as pernas, debaixo da mesa, e ouviu-se um ruído semelhante ao de ossos a partirem-se. – Estás a ouvir? Às vezes olho para as medalhas e para as taças que tenho em casa, e depois olho para as cicatrizes dos joelhos e penso que trocaria de boa vontade. Devolveria as medalhas se levassem com elas as cicatrizes.”
Qualquer comparação entre o descrito por Cully e o apresentado pelo tenista Juan Martín Del Potro no passado dia 5 de Fevereiro não será mera coincidência: “Venho a fazer demasiado esforço para seguir em frente e o joelho está a fazer-me viver um pesadelo. Há muitos anos que estou a tentar, muitas alternativas, tratamentos, médicos, maneiras diferentes de tentar resolver isto, mas não consegui.” Ao anunciar a sua retirada, Del Potro revelou ainda que o pior era que até parado sentia dores, dormindo com dores há dois anos e meio… E “perante a dor não há heróis, não há heróis, pensou ele [o Winston de George Orwell (2)] e tornou a pensar, enquanto se contorcia no chão, agarrando-se inutilmente ao braço esquerdo dorido.”
No desporto é inculcado ao praticante desportivo a ideia de esforço, de sacrifício, a fim de se ultrapassar a si próprio. O «no pain no gain» – a pedagogia da dor – ainda se encontra muito presente no mesmo. Ser severo consigo próprio, apreciar quase um masoquismo para se ultrapassar é uma das formas de acondicionar o desportista e é uma das condições inerentes ao próprio desporto. Ou como diria a Meggie de Colleen McCullough (3), “a única coisa que podemos fazer é sofrer a dor e dizer intimamente que valeu a pena.”
A lista dos marcados para o resto da vida pelo desporto é longa e não é de agora: Roger Riviére, Yelena Mukhina, Dennis Byrd, Pat Lafontaine, Patrik Sjoberg, Charles Barkley, Van Basten, Brian Laudrup, Vítor Martins, Eusébio, Mantorras, Roy Keane, Cris Pringle, Karen Forkel, Mark McGuire, Jan Zelezny, Sebastian Deisler, Maurice Greene, Yao Ming, Ticha Penicheiro, Na Li, Naide Gomes… entre muitos outros! A morbilidade perene continua a ter as suas vítimas…
Entretanto Gianni Infantino continua a sua cruzada para que a FIFA realize os Campeonatos Mundiais de futebol de dois em dois anos... Entretanto Infantino mudou-se com a família para o Catar – alegando a necessidade dessa mudança para estar mais próximo da organização desse Mundial… Entretanto o Presidente da FIFA continua a pagar os seus impostos na Suíça… Como nos diz Shusaku Endo (4), “quando há chefes incompetentes no campo de batalha, o sangue dos guerreiros é desnecessariamente derramado.”
A FIFA, com mais de duas centenas de federações filiadas, pretende tornar o negócio mais atraente e lucrativo em detrimento da saúde dos jogadores e da boa vontade dos consumidores do espectáculo – que já nem adeptos são de tal modo que se encontram subjugados pelos interesses económicos. E recorrendo de novo a Shusaku Endo (5), estes, tal como os seus aldeões japoneses, “acreditaram demasiado tempo, os infelizes, que nasceram para viver resignados.”
Do outro lado do mundo a China leva a cabo os Jogos Olímpicos de Inverno… os primeiros Jogos a terem 100% de neve artificial (que impacto em termos ambientais?), em que há tolerância zero para os protestos (onde está a liberdade de expressão?), em que os espectadores nas bancadas são apenas os convidados pela organização (existe o livre acesso ao espectáculo?), desenrolando-se os mesmos mais sob o signo político e económico do que sobre qualquer desígnio desportivo. Segundo Graham Greene (6), “a desgraça, como a devoção, também pode converter-se em hábito.”
Em 1952, em Helsínquia, a China negou-se a comparecer aos J. O., o que sistematicamente aconteceu até 1980, em protesto contra o reconhecimento pelo COI de Taiwan – era o confronto entre a China Popular e a China Nacionalista – e nos J. O. de 1956, em Melbourne, vários países organizam um boicote, entre os quais a Espanha, a Suíça e a Holanda, uns em protesto contra a invasão da Hungria pela União Soviética, outros por causa da crise no Suez e da guerra entre o Egipto e Israel. Se nos Jogos Olímpicos realizados na então URSS (1980, Moscovo) e nos organizados nos EUA (1984, Los Angeles) com os respectivos boicotes de ambos os lados os grandes prejudicados foram os atletas que, tendo-se preparado para ambos, em nenhum deles competiram, actualmente a situação de discórdia assume contornos mais requintados: o boicote passa a ser pura e simplesmente diplomático: Índia, EUA, Austrália, Canadá e Reino Unido não participaram na cerimónia de abertura dos J. O. de Inverno Beijing 2022 apesar dos seus competidores participarem nas devidas provas. Ernest Hemingway (7), ao descrever a Place Conterscape, também nos afirmava que “pelas imediações daquela praça havia duas espécies de fauna: os bêbados e os desportistas. Os bêbados matavam a sua pobreza dessa maneira; os desportistas consumiam-na em exercícios.”
Caricato (ou então hipocrisia pura) é a Rússia estar impedida de participar nestes J. O., mas 212 concorrentes russos participam debaixo da designação “ROC”, sigla de Russian Olympic Committee… Mário de Carvalho (8) dizia-nos que “se não existisse o exorcista, não existia a exorcização.”
Continua a estar tudo na literatura! Por isso, não procurem saber por quem os sinos dobram, nas palavras de John Donne no já distante ano de 1624. Eles dobram por ti, eles dobram por vós! Eles dobram por nós!"

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