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segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Pedrinho, mais um incompreendido


"Vê-se Pedrinho a jogar, e a deslumbrar e a fazer golos no Shakthar Donetsk, e num jogo de Champions já agora, em casa do Mónaco, não na desequilibrada liga ucraniana, e não se entende como pôde o Benfica dispensá-lo (vendido, é certo, mas sem ponta de lucro) com facilidade inaudita e sem que ninguém vertesse uma lágrima. Não se entende ou talvez se entenda, que o problema não é só do Benfica, ou de Jorge Jesus, é de uma forma de olhar o jogo que sobrevaloriza o mais óbvio e mais fácil de observar: a dimensão física, aceleração e potência, capacidade de transportar bola longos metros, predisposição para duelos, uma espécie de futebol transformado em combates sucessivos, como pontos numa luta de boxe, ilusoriamente traduzível em números, porque vários deles ocos e inúteis, sem que se entendam no contexto tático – de um jogar, da posição e da função, da relação com os colegas, de uma estratégia. A consequência trágica é desvalorizar a intuição e a arte, que só os melhores garantem, trocadas pela simples velocidade ou força que, não sendo obviamente desprezíveis, se encontram com facilidade em jogadores banais. Levada ao limite a obsessão com o mensurável, Adama Traoré seria tão candidato à Bola de Ouro como Messi, não houvesse um Jorginho que nos chamasse à razão.
Pedrinho – volto a ele - é apenas um exemplo recente do jogador a quem por aparente fragilidade de envergadura não é dado o valor devido. Nem o lugar certo no campo. O futuro mostrará, porque tem finalmente um treinador que acredita verdadeiramente no talento, o italiano De Zerbi, que o Benfica - e o futebol português como um todo, o que inclui os críticos - falhou na valorização daquele talento, que Jorge Jesus, aliás, de forma prematura e errada (mais condicionadora de tantas opiniões, como sempre) definiu como tendo uns cinco da mesma função à frente dele no Brasil. Não tinha, não tem e arrisco que o futuro próximo não deixará grandes dúvidas quanto a isso. Tivesse Pedrinho tido as oportunidades dadas a Everton Cebolinha, um jogador de qualidade e porventura o primeiro dessa lista exigente do treinador encarnado, e não duvido de que outra seria a conversa hoje. Aliás, na mesma linha, o próximo a partir da Luz sem glória pode ser Luca Waldschmidt, em mais um negócio sem lucro de um atacante internacional com o melhor da carreira pela frente. Mesmo assim, a maioria dos benfiquistas, e os adeptos em geral desde que consigam apreciar jogadores rivais, lamentará mais depressa uma eventual partida de Vinícius – por ser robusto, rápido e de pontapé forte - que a do alemão, futebolista incomparavelmente melhor, no entendimento do jogo, nas soluções que dá ao coletivo, e que até faz golos em número muito razoável, se jogar mais vezes e sobretudo se alinhar em posições que lhe autorizem invadir a área com frequência. Restam-me poucas dúvidas de que na origem da afirmação irregular do alemão estão razões idênticas às de Pedrinho e que, também no caso dele, o futuro demonstrará que se desperdiçou um talento incomum.
Jogadores destes garantem o que nenhum GPS capta: decisão certa no melhor momento e local, capacidade de pensar e executar em espaço curto, o que é cada vez mais decisivo para equipas de iniciativa perante adversários que se fecham, finalização de qualidade se mais vezes puderem enquadrar a baliza. O problema é que criativos destes são não apenas utilizados a medo como cada vez mais empurrados para os corredores laterais – sempre com o pensamento defensivo a dominar – o que se transforma num erro múltiplo: dá-se um espaço mais pequeno a quem garante um repertório de soluções maior, retira-se o craque da maioria das ações de ataque porque confinado a uma faixa, sugere-se que insista em situações de um para um e cruzamento quando a natureza destes talentos é associativa. Para cúmulo do absurdo, ainda se exige que se desgaste mais quando não tem bola do que na sua posse, não vá ser acusado de falta de “compromisso” defensivo, por não ter passado o jogo em “piscinas” a acompanhar o lateral contrário. A esse nível, a discussão sobre o contributo de Bernardo Silva no último europeu é lapidar. Aquele que deveria ter sido o maior criador de jogadas ofensivas de Portugal “desiludiu” a maioria porque não anulou vezes suficientes as investidas do lateral contrário. Para isso, nem Bernardo, nem Pedrinho são os homens certos, de facto. Nem Waldschmidt. E já agora nem Francisco Conceição, talvez o maior talento criativo nascido em Portugal depois de João Félix, mesmo se aparentemente, pelo menos até esta fase da carreira, confortável a enfrentar o jogo a partir do corredor lateral. O que eles são mesmo, todos os que citei, é jogadores diferenciados, pontualmente mesmo geniais, que respiram melhor quanto mais vezes tocarem na bola em zona de ataque. Não lhes peçam que sejam fortes nas correrias sem bola que isso não falta quem faça melhor. Nunca concordo com os elogios recorrentes a Simeone pela capacidade de colocar artistas a fazer o papel de burocratas. Como difícil mesmo é transformar burocratas em artistas, talvez não seja má ideia proteger estes últimos, sobretudo não os amarrando a conceitos que castram o talento que se distingue e nos encanta. Quando me dizem que jogadores de tal jaez - Pedrinho, Félix ou Chico Conceição – vão melhorar quando aprenderem a defender melhor, normalmente encerro o debate. Respeito as muitas formas de se olhar para um jogo, mas já não me iludo quanto às lentes burocráticas, que podem funcionar como lupas de aumento pontualmente úteis, mas não ajudam a corrigir dioptrias."

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