"Da minha varanda não se espreitam montanhas. Apenas o rio, os campos de arroz, às vezes o voo longo dos bandos de flamingos. Se me debruçar, espreito a solidão, hoje sem chuva. Algo veio aí para tornar todos os dias domingos. Alcácer tem as águas-furtadas espreitando a tristeza dos outros e já nem os cães uivam à noite porque, na sua intuição de cães, compreenderam a frase de Omar Khayaam: “Nem todas as tuas lágrimas apagarão a palavra escrita”.
Não, a palavra escrita nunca se apaga. Talvez por isso escreva, pode ser que me leias e não esteja, afinal, sozinho por entre muros brancos e pessoas que não vejo e só adivinho para lá das paredes. O tempo passa devagar como é próprio dos domingos, mesmo deste domingo que o não é. Ontem já foi tão longe, não foi? E, no entanto, olho o rio correndo para a foz e parece-me um dia normal. Se calhar, é esse o problema: é parecerem todos dias normais (vá lá, domingos normais) e estarem ao mesmo tempo carregados de mortes já morridas e outras mortes ainda por morrer. Como uma promessa sinistra neste fim de tarde em que o Sado vai consumindo a luz e as estrelas surgem, uma a uma, para fazerem desenhos no céu.
O sorriso moreno dos teus olhos devia levar-me de braços abertos às montanhas.
“Levántate y mira la montaña
De donde viene el viento, el sol y el agua
Tú que manejas el curso de los ríos
Tú que sembraste el vuelo de tu alma”, cantava Victor Jara. Era uma canção de crença. “Levántate y mira la montaña, coño!” Mirar a montanha é descobrir a miragem mais bonita que a noite seja capaz de inventar. Reconheço constelações de cor, e a escuridão do espaço faz delas poemas inteiros. Mesmo que não rimem.
“Levántate y mírate las manos
Para crecer, estréchala a tu hermano
Juntos iremos unidos en la sangre
Hoy es el tiempo que puede ser mañana”.
Não é tempo de apertar a mão de ninguém. Nem mesmo de irmão para irmão. Mas, acredita, ainda voltarei atrás para devolver o abraço que te devo."
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