Últimas indefectivações

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Francisco dos Santos

"Quem será o Fergus Suter português? E que até jogou numa das melhores equipas italianas...
A série “The English Game”, da autoria de Julian Fellowes (o criador de “Downton Abbey”), tem sido muito falada entre aqueles que amam o desporto-rei, já tendo sido mencionada nesta página. O enredo conta-nos, com alguma subjectividade dramática, como é natural, a história de como o futebol passou da aristocracia para a classe operária da Inglaterra dos finais do século XIX. O principal protagonista é o escocês Fergus Suter, que foi o primeiro jogador de futebol a ser pago para o fazer, bem como a ter alguma fama e notoriedade.
E em Portugal, como terá acontecido isto? Quem terá sido o Fergus Suter português? A verdade é que não deverá haver um equivalente exacto.
Podemos apontar alguns nomes que se destacaram no início do século XX, como Artur José Pereira (que se destacou no Belenenses), Cândido de Oliveira, Pepe (também do Belenenses), Francisco Stromp (Sporting), entre outros. Mas falemos do primeiro jogador luso que, tal como Suter, se aventurou no estrangeiro: Francisco dos Santos.
Primeiro, o contexto. As origens do futebol no nosso país remontam à ilha da Madeira, quando em 1875, na Camacha, se terão dado os primeiros toques na bola. Tudo devido à forte presença de marinheiros e estudiosos ingleses pelas praias portuguesas, que foram ensinando as populações locais a praticar aquele desporto novo.
Três anos, depois, em 1878, nascia em Rio de Mouro, Sintra, Francisco dos Santos. Filho de uma família da classe média, Francisco perde o pai aos 2 anos de idade. Aos 10, com a ajuda do padre da freguesia, ingressou na Casa Pia de Lisboa, onde revelou uma forte propensão para a arte e para o desporto, apesar de ser um rapaz baixo e franzino. O seu percurso académico continuaria com a matrícula na Escola de Belas Artes de Lisboa, em 1893.
Na última década do século, Francisco, para além de ter terminado o curso com distinção, ia jogando futebol com os seus amigos casapianos. A 22 de Janeiro de 1898, a equipa do colégio venceu por 2x0 os ingleses do Carcavellos Club, equipa invencível até então. Um feito notável e mediático, numa altura em que os ingleses dominavam a modalidade e quando havia na sociedade portuguesa um forte sentimento anti-britânico devido a motivações políticas – o maior exemplo disso é o próprio hino nacional, escrito em 1890, que originalmente dizia “contra os bretões, marchar, marchar!” em vez da versão que hoje conhecemos.
O futebol começava assim a fazer parte da vida do artista. Em 1903, ganhou um concurso de escultura cujo prémio era uma bolsa de estudo na Escola de Belas Artes de Paris. Na cidade-luz, Francisco passou por muitas dificuldades ao nível financeiro, pois o dinheiro da bolsa nem para o essencial chegava. Na velhice, admitiu que chegou a usar folhas de jornais por dentro das roupas para se aquecer. 
Sempre que regressava a Portugal, Francisco dos Santos jogava futebol com alguns ex-colegas da Casa Pia nos vermelhos e brancos do Sport Lisboa, clube fundado em 1904, que anos mais tarde se fundiria com o Grupo Sport Benfica para dar origem ao Sport Lisboa e Benfica, clube que julgo que os leitores desta página já devem ter ouvido falar.
Em 1906, Francisco beneficiou da fortuna que o Visconde de Valmor deixou em testamento à Academia de Belas Artes de Lisboa para residir em Roma, e seria na capital italiana que iria consolidar a sua reputação, tanto na arte como no futebol (passe o pleonasmo).
Numa manhã de 1907, estava a passear o cão nos jardins de Villa Borghese quando encontrou a equipa da Lázio a treinar. Conversa puxou conversa, e foi assim que um jogador português começou a jogar pela primeira vez por um clube estrangeiro, apesar do amadorismo que ainda perduraria por algumas décadas no Calcio italiano.
A sua passagem pelos biancocelesti ainda hoje está bem documentada para os padrões da época. Estreou-se a 1 de Setembro de 1907, em Perugia, numa goleada frente ao Siena por 5x0, por ocasião de um torneio inter-regional, e ainda nesse ano conseguiu reclamar para si nada mais nada menos que o estatuto de capitão de equipa.
Francisco dos Santos era conhecido por ser um futebolista de qualidade, e de uma enorme resiliência. Consta que num desafio em Pisa, depois de um choque contra um adversário, partiu 2 costelas… e continuou em campo. Já o oponente, teve de ser encaminhado para o hospital.
A 20 de Janeiro de 1908, o “homem-cacto”, como ficou conhecido em Itália devido à sua estatura, participou no primeiro derby entre o seu clube e o Foot Ball Club de Roma – clube que nada tem a ver com o AS Roma, fundado apenas em 1927. O célebre jornal Gazzeta Dello Sport mencionou-o num artigo sobre o jogo: “em evidência estiveram o jovem Saraceni e o veterano Dos Santos, que com os seus 55 quilos foi impressionante, dos melhores em campo…”. Com a camisola dos azuis e brancos da Cidade Eterna, Francisco conquistou, que se saiba, a Coppa Tosti e a Coppa Baccelli, dois torneios inter-regionais da época.
Em 1910, regressou a Portugal, onde ingressou no Sporting. De acordo com jornais desportivos da época, como o “Os Sports Illustrados”, Santos era half-back esquerdo, e também jogava a forward, numa altura em que a cultura táctica estava ainda longe da modernidade. De leão ao peito, jogou ao lado de nomes bem conhecidos do conjunto de Alvalade, como Francisco Stromp. Fez parte dos primeiros conselhos técnicos do clube, e como se não bastasse foi também árbitro e um dos fundadores da Associação de Futebol de Lisboa.
Não se pode dizer que tenha sido, como Fergus Suter, pago para jogar futebol. Aliás, é muito provável que não tenha porque consta que em Itália, para além da escultura, dava aulas de francês para ir conseguindo pagar as dívidas e pôr comida na mesa, que já era pai de um menino chamado Francesco. No entanto, para além de ter aproveitado as viagens grátis da equipa para visitar museus e galerias de arte em solo transalpino, conseguiu a proeza notória de capitanear um clube histórico do futebol italiano.
As peripécias futebolísticas deste indivíduo de que falamos, apesar de fascinantes, em nada se compararam ao seu legado artístico, mais precisamente como escultor, que tentei evitar ao longo deste artigo por estarmos numa aula de futebol e não de Artes Plásticas. No entanto, guardei a maior surpresa para o fim.
Entre as obras mais conhecidas do escultor/jogador, estão o Monumento do Marinheiro ao Leme, no Cais do Sodré, a estátua “Prometeu”, no jardim Constantino (em Arroios), o Busto Oficial da República Portuguesa, e por último (rufem os tambores) … O Monumento do Marquês de Pombal, bem no coração de Lisboa.
A vida tem destas coisas. Neste caso, um ex-jogador do Sport Lisboa e também do Sporting foi o principal responsável pela construção de uma estrutura que, nos dias de hoje, é bastante associada à celebração de títulos de futebol dos dois maiores clubes de Lisboa. Na estátua podemos ver o Marquês, acompanhado de… um leão. Apesar deste elemento significar força e poder, há quem não resista em reclamar o “sportinguismo” da obra, numa daquelas picardias eternas dos rivais da Segunda Circular.

Sem comentários:

Enviar um comentário

A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!