"Em certas modalidades, em vez de se cronometrar a velocidade deveria cronometrar-se a lentidão
Marcha bem acima do solo
1. Leio que o «maior funâmbulo do século XIX foi Jean François Gravelet (1824-1897) que atravessou as cataratas de Niágara numa corda de 76mm». 76mm mal dá para pousar a parte de trás do pé. Trata-se, portanto, de colocar todo o peso em setenta e seis milímetros de solo pouco sólido, a corda. Porém, não pode ser, na verdade, todo o peso sobre a corda pois assim o funâmbulo cai. O peso tem de ser distribuído, mas de uma forma louca, demente: parte do peso cai sobre aqueles 76 milímetros, a outra pare do peso do corpo é dirigida para o ar, para o espaço vazio. Como é que o ar suporta peso? não sabemos. Como é que o espaço vazio, o velho ar não de deixa cair, a um sujeito que não é um pássaro? também não sabemos. Mas sim, é isso: uma corda de 76mm para Jean Gravelet, mais conhecido como Charles Blondin.
A corda, especifica ainda o livro dos recordes do Guiness, tinha 335 metros de comprimento.
Pois bem, não é corrida de cem metros, nem sequer uma corrida de velocidade de 335 metros porque as velocidades do funâmbulo, que esta 48,75 metros acima do nível das águas, ou melhor, a 48 metros acima do solo duro, não podem ser as mesmas de um velocista. Trata-se de uma corrida lenta. Uma marcha, uma marcha lenta.
Corridas de lentidão
2. Em certas modalidades em vez de se cronometrar a velocidade deveria registar-se a lentidão. E sim, há certas sujeitos, certos atletas, certos jogadores de futebol tão lentos que não fazem corridas de velocidade, mas sim de lentidão. De qualquer maneira, não vamos dizer os nomes.
Na verdade, é curioso pensar-se nisso: o mesmo instrumento, o cronómetro, mede e contabilidade a velocidade e a lentidão. O que é quase inaceitável, diz Jonathan, um amigo. Deveria existir um cronómetro para medir a rapidez e um outro aparelho completamente diferente para medir a lentidão. Por exemplo, uma ampulheta já é um instrumento mais apropriado para medir a lentidão.
A corrida de certas atletas seria contabilizada pelo cronómetro, enquanto a de outros atletas mais lentos seria registada pela ampulheta, eis uma proposta. Ou mesmo, no limite, para os muito, muitíssimo, lentos, as suas corridas seriam medidas pela luz do sol. A velocidade do sol basta para os muitos lentos.
Sol: uma espécie de cronómetro antigo que funciona sempre, não avaria; cronómetro sem motor e sem uma precisão por aí além, mas sol é sol.
O recorde de Baldwin
3. Pois, mas voltemos a essa corrida lenta, o funambulismo: andar em cima de uma corda muitos metros acima do solo é uma corrida, ou marcha, que quer ao mesmo tempo percorrer 335 metros de comprimento e não cair. E de facto é isto: uma corrida que quer evitar a queda passa a ser mais mental do que física. Não acelerar mais do que um limite perigoso, tal exige uma concentração absoluta.
Um dos mais velhos funambulistas, talvez o mais velho, foi um tal de William Ivy Baldwin (1866-1953) «que atravessou South Boulder Canyon, Colorado, USA, num arame com 97,5 metros de extensão, sobre um abismo de cerca de 381 metros» no preciso dia do sei 82.º aniversário: 31 de Julho 1948. Uma notícia que impressiona. E uma idade que impressiona ainda mais.
Envelhecer em cima do solo
4. - É curioso pensar nisto - diz o meu amigo Jonathan - à medida que se vai envelhecendo o andar diminui de velocidade e, no limite, o solo torna-se semelhante a uma corda colocada bem acima do chão. O solo parece que fica mais alto e a queda mais perigosa. O muito idoso caminha no solo parecendo que vai cair; corre um certo perigo e por isso transforma-se, de certa maneira, num funâmbulo sobre o solo, um funâmbuo rodeado de chão por todos os lados. E sim, em redor do idoso muito vagaroso, há perigo, o perigo da queda.
Para todos nós, a vida um pouco isto: envelhecer é semelhante a uma aprendizagem de funâmbulo: aprende a andar com cautela, senhor e senhorita, como se o solo fosse uma corda estreita.
Eis o envelhecimento: a arte do funâmbulo."
Gonçalo M. Tavares, in A Bola
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