"Nas suas crónicas deliciosas, o saudoso Duda Guennes reservava um lugar especial para o Íbis Sport Clube, o “pior time do mundo”. Ao contrário dos grandes clubes do mundo, a lenda do Íbis alicerçava-se nas suas derrotas, contínuas, imparáveis. A perder, o clube de Pernambuco era imbatível. As suas vitórias eram fenómenos astronómicos, cometas que raramente visitavam o nosso planeta. Os seus desaires recorrentes valiam quase tanto como a Libertadores. Por muito que se esforce, nenhum clube poderá destronar o Íbis do título que alguns jornalistas espirituosos lhe outorgaram e que o Livro do Guiness ratificou. E se há um clube que se tem esforçado para suceder ao pequeno clube brasileiro é este Sporting de Varandas, Hugo Viana e, agora, sabe-se lá até quando, Silas.
O adversário entra em campo, olha para aqueles onze indivíduos com o mítico símbolo do leão rampante e esfrega as mãos de contente. Está na hora da paparoca. Um Alverca afundado no campeonato de Portugal (é o nosso terceiro escalão, para que não restem dúvidas) lança-se à jugular do tímido leão como gato a bofe, sente-se um Barcelona e os seus jogadores, mesmo que abençoados por algum talento, jogam com a confiança de craques eternos. Viram aquele golo de Apolinário? E o movimento soberbo num remate de bicicleta que o pobre Max defendeu por instinto para não levar com a bola na cara?
A sensação de que qualquer equipa pode disputar o jogo olhos nos olhos com o Sporting é terrível para os adeptos, mas não é melhor para os jogadores. Silas diz que quer um Sporting mandão, a dominar os jogos e a construir de trás, segundo a cartilha em vigor dos táticos modernos, que é a saída a três. É bonito que Silas confie na sua filosofia, mas tais requintes lembram um homem a morrer à fome que se queixa ao cozinheiro do tempero. Antes de mostrar as credenciais de gourmet, Silas tem de realizar a tarefa básica de alimentar a equipa. As ideias podem ser perfeitas no papel e, à partida, não é censurável a decisão de apostar nos jogadores com quem trabalhou nas últimas duas semanas, mas se estas ideias, executadas por estes jogadores, não chegam para ganhar a uma equipa da terceira divisão numa noite chuvosa em Alverca, a quem é que o Sporting poderá ganhar? Nem ao Íbis.
Rafa Castanheira, capitão do Alverca, falou curto e grosso no fim do jogo: “Não me venham com desculpas que eles estão numa má fase. Os jogadores que estão ali têm mais do que qualidade para nos ganhar.” A verdade é que não ganharam e nunca estiveram perto de o fazer. Assim que a bola chutada por Apolinário entrou na baliza do Sporting toda a gente sentiu que o destino estava traçado. E esse sentimento de impotência, de pavor de pesadelo, começa nos jogadores, cresce nas bancadas e termina simbolicamente no banco onde está sentado um treinador mudo por decreto.
Dá pena ver Silas naquele imobilismo regulamentar, naquele silêncio de secretaria, um silêncio de estátua nível III. Se a coisa fosse propositada teria uma certa grandeza. O hierático Silas seria como um capitão sensato e digno que, perante o naufrágio, reconhece que são fúteis os impropérios lançados aos vagalhões indómitos. Diz a Bíblia, em Provérbios 17:28, que até o tolo, quando se cala, é reputado por sábio. Confrontados com o silêncio voluntário do treinador os adeptos das tarjas e dos lenços brancos diriam: “ali mora um sábio.” Só que este silêncio não é voluntário. É uma imposição.
Silas está proibido de falar. Não pode dar instruções para o campo. Está condenado a assistir à derrocada das suas ideias em silêncio. E não esboçou o mínimo gesto de protesto. Poderia tê-lo feito. Poderia ter arriscado uma multa, uma suspensão e gritado com os seus pupilos, prometendo-lhes sevícias e torturas escabrosas assim que o jogo terminasse. Não. A chuva caía e Silas manteve-se resguardado e impávido. Se, por um acaso bíblico, o estádio se tivesse afundado e a terra tivesse tragado jogadores e árbitros poupando apenas os bancos de suplentes, creio que Silas estaria lá até hoje, sem mexer uma palha, à espera que do quinto dos infernos se ouvisse um apito diabólico a dar por encerrada a partida.
Quando se diz que há demasiado ruído à volta do futebol ninguém está a pensar na necessidade de silenciar os treinadores. Um treinador mudo, um treinador-estátua, enquanto não se inventa uma forma telepática de comunicação, acaba por ser a personificação do descalabro impotente. Silêncio bom, inteligente, superior foi o de Rui Jordão, falecido na passada sexta-feira. Quando pendurou as chuteiras, cortou para sempre com o futebol e tornou-se pintor. Numa era em que existir se confunde com aparecer, foi comovente ver as reacções à morte de Jordão, como se ele tivesse deixado de jogar ontem, como se aqueles dois golos em Marselha tivessem sido marcados há minutos, como se tivesse abandonado o antigo Estádio de Alvalade há poucas horas, como se as suas derradeiras aparições naquela equipa do Vitória de Setúbal composta por velhas glórias e assinalada pelo mítica publicidade à Ariston estivessem mais vivas do que memórias mais recentes de outras estrelas.
Nem trinta anos de silêncio puderam apagar a elegância de Rui Jordão nos relvados. Aliás, a sua ausência deliberada reforçou a memória dos seus movimentos incomparáveis, dos seus festejos que também eles eram bailado. De todos os nomes de futebolistas que marcaram a minha infância – Romeu, Eurico, Shéu, Bastos Lopes, Bento, Damas, Gomes, Vermelhinho, Pietra – há dois que se destacam e que foram, por assim dizer, o início de tudo: Chalana e Jordão. Por acaso, ou não, os dois artífices dos golos contra a França na célebre meia-final do Velódrome. Sobre o avançado do Sporting, escreveu a jornalista Paula Caeiro Varela as palavras definitivas: “Eu nem sabia que ele se chamava Rui. Era o Jordão. E isso era tudo o que bastava. Não me lembro de outro jogador antes dele, todos os outros vieram depois.” Para a minha geração, Jordão era um dos que estavam lá quando tudo começou. Na hora da sua morte, o futebol que ele quis esquecer lembrou-o como merecia."
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