Últimas indefectivações

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Da impunidade dos árbitros (...)

"Uma das coisas que mais ouço, a propósito de arbitragens consideradas como negativas, é que os árbitros de futebol parecem viver num mundo sem leis ou, pior, acima delas. Bem acima delas.
De facto, a sensação que as pessoas têm é que eles são os únicos agentes desportivos que passam impunes, ainda que cometendo - no âmbito das suas funções - erros que todos avaliam como graves, evidentes e grosseiros.
Essa preocupação, esse cheiro a injustiça, em tese, faz sentido.
A verdade é que, quando um jogador tem comportamento grosseiro ou violento, é expulso (ou está previsto que seja). O mesmo acontece ao treinador ou a qualquer outro elemento do banco técnico que tenha conduta irresponsável.
Isto para não falar da "outra punição", porventura maior, que técnicos e atletas estão igualmente sujeitos: à que resulta do desagrado maciço dos sócios e adeptos (algo sempre desagradável e, por vezes, a roçar o humilhante) ou da que se traduz na não renovação de contratos (ou, no limite, na rescisão do contrato de trabalho, em plena época desportiva).
Está claro de ver que o futebol profissional é, nos dias de hoje, um universo encantador mas de tremenda pressão e exigência para todos. E, talvez por isso, cada jogo, cada jogada, cada lance, pode assumir contornos dramáticos porque, em boa verdade, pode determinar o sucesso ou insucesso, a alegria ou angústia, a continuidade ou saída de muitos dos principais intervenientes no jogo. 
Intervenientes que, não esqueçamos, são pessoas. Pessoas com ambições pessoais e profissionais, com valores, amigos, família.. Como alguém disse recentemente... é complicado. Muito complicado. 
Isto remete-me, de novo, para a tal sensação exterior de impunidade de que (alegadamente) gozam os árbitros. Escrevam o que vos digo: as coisas não são bem assim. De todo.
Os árbitros são punidos sim (e de diversas formas), os seus erros têm consequências práticas e, tal como tantas vezes acontece com jogadores e treinadores, isso também repercute-se nas suas carreiras desportivas.
A grande diferença é que, ao contrário do que acontece com aqueles, essas "sanções" não são tornadas públicas. Não se sabem, não se conhecem. Mas a essa reflexão já voltamos.
Por enquanto, percebam então o que pode acontecer a um elemento de uma equipa de arbitragem quando as coisas correm francamente mal no campo desportivo:
- Não ser nomeado para actuar durante uma ou mais jornadas. Na prática, é como se tivessem visto cartão vermelho e ficassem "suspensos" por tempo a definir. Reparem: nada diferente do que acontece com atletas e técnicos.
Sabem o que mais lhes dói nessa "paragem forçada"? É ficarem privados de fazerem o que mais gostam e, claro, deixarem de auferir as verbas a que teriam direito. Na prática, esse castigo, o da "jarra" (como alguém um dia celebrizou), mexe, directamente, com a sua auto-estima/brio profissional e com a sua vida financeira.
- Depois há a questão da avaliação.
Todos os árbitros (e restante equipa, VAR incluído) têm uma nota por cada jogo que dirigem. O relatório, que é preenchido pelos respectivos observadores, tem parâmetros objectivos, bem definidos, que vão desde o acerto/erro nas decisões mais importantes à condição física, personalidade, movimentação, colocação, interacção com os colegas, etc. Da soma dessas avaliações dependerá o seu ranking final.
Na prática, quanto mais erros somarem, pior será a classificação final... e maior será a possibilidade de serem despromovidos. De deixarem de ser árbitros no escalão maior do futebol português. 
Reparem: é mais ou menos o que acontece com as equipas que têm menos pontos no final da época: descem de categoria.
- Há ainda outra punição, mais rara mas real, que é a da instauração de processos disciplinares: qualquer conduta, dentro do terreno de jogo ou fora dele, que tenha elementos de prova suficientes que a sustente, poderá levar ao recurso a esta medida. As consequências poderão ir da aplicação de uma sanção mais leve (repreensão por escrito) a outras bem mais pesadas (pontos deduzidos à classificação final, jogos de suspensão, etc).
Reparem: nada diferente do que, por vezes, vemos acontecer com atletas e treinadores, dirigentes e clubes. E tal como acontece também com eles, a tensão pessoal que tudo isto cria é, como imaginarão, tremenda.
O número crescente de erros que um árbitro comete em campo coloca-o mais próximo dos lugares de descida. Que é como quem diz... do fim prematuro da sua carreira (raramente continuam a dirigir jogos nos escalões amadores).
- Por fim, o pior dos "castigos": o que resulta do julgamento sumário em praça pública. O que resulta da sentença traçada pelos opinion makers, pela imprensa, pelas declarações inflamadas de responsáveis alterados.
O escrutínio a que hoje estão sujeitos coloca-os na senda de humilhações públicas diárias. Constantes. Permanentes. A justiça feita pelo povo pode acontecer a qualquer hora, em qualquer esquina e a qualquer altura do dia.
O árbitro que comete erros grosseiros em jogos mediáticos, anda na rua como uma lebre anda na mata, em plena época de caça: com medo. Com medo ou com coragem muito negligente. E esse é um castigo que vai além do que aquele que pode e deve merecer, em termos desportivos.
Porquê? Porque afecta o seu bem-estar enquanto pessoa, porque ofende a sua integridade enquanto ser humano, porque perturba a sua privacidade, a da sua família. Porque o amordaça a uma liberdade restritiva, impedindo-o tantas vezes de ir e estar onde quer, como e com quem quer. Deixa de ser uma pessoa livre que olha para a frente e passa a ser uma presa que espreita constantemente por cima do ombro.
Isto é ou não é a pior das punições?
Não tenha dúvidas, caro leitor: os árbitros são sancionados sim e, como viu, praticamente na mesma medida e dose que o são os outros agentes desportivos. Publicar essas punições traria mais sentido de justiça e acalmaria o povo? Sim, provavelmente sim.
Mas, pensemos com outra profundidade: que efeito prático traria? Passado o período de raiva, esvaziado o balão das emoções, para que serviria mesmo?
Para lhe colocar um carimbo, um rótulo, um selo de "produto estragado"? Para apontar-lhe o dedo, de cada vez que voltasse a dirigir um jogo, em qualquer estádio, noutro qualquer dia?
Esse peso - o da chacina em praça pública - não poderá ter efeito contrário? Não o inibirá a voltar às boas arbitragens? Não terá peso negativo na sua consciência, na sua actuação seguinte, na sua liberdade de actuar? A divulgação do "castigo", afinal, serviria para quê? Serviria a quem?
Para reflectir. Apenas para reflectir."

1 comentário:

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