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terça-feira, 15 de maio de 2018

O homem que usou a camisola da Liberdade

"Jacinto. O Marques. Vencedor da Taça Latina. Havia nele uma honestidade e uma correcção à prova do tempo. Esteve quinze anos no Benfica. Um dia olhou para dentro de si próprio e disse adeus...

Pendular, hoje em dia, é nome de comboio. Em tempos era o apodo que davam a Jacinto: o Jogador Pendular.
Jacinto do Carmo Marques foi de uma regularidade tremenda ao longo de toda a sua carreira. Não era um artista: era essencialmente um trabalhador. Correcto, seguro, sem vaidades.
O Carlos Pinhão, meu mestre, dizia de jogadores como ele: são de dar-e-levar.
Jacinto dava e levava. À chuva, ao sol, nos relvados e pelados deste pais, e eles eram muitos, então, os pelados, claro está.
Veio da Cova da Piedade. Ou, melhor, das Barrocas.
Tinha o desporto no sangue: os irmãos Silva Marques, seus tios, tinham-se destacado na natação e no futebol.
Jogou numa equipa que tinha um nome lindo: Liberdade FC, de Mutela.
Ah! Quem não gostaria de jogar com a camisola da Liberdade?!
O seu pontapé era notável. Especialista no shooting da recarga. Depois vogou ao sabor da juventude: Sporting Piedense, Aldegalense, Carcavelinhos.
Jogou na Tapadinha antes de haver Atlético. Por 300 escudos...

No Benfica por 10 contos
O Benfica, por seu lado, já teve de alargar os cordões da bolsa. Jacinto ganhara nome e corpo. Tornara-se num jogador de mão-cheia. Vai daí, dez contos de réis trouxeram-no para o Campo Grande. Ficou feliz: 'O Benfica sempre foi o meu clube preferido!'
Isto dito por alguém que jogou no Liberdade...
Veio para o Benfica para ficar e foi ficando.
Quinze anos.
Vitórias brilhantes: Taça Latina, Campeonatos Nacionais, Taças de Portugal.
Jacinto-para-toda-a-obra, ali na direita da defesa.
Duro, mas leal. Seiscentos jogos sem uma punição, um castigo.
A Liberdade vivia dentro dele. A sua Liberdade e a dos outros.
Tinha um entendimento especial com Moreira. Eram uma espécie de irmãos gémeos numa equipa de irmãos. Só uma equipa de irmãos venceria, no Jamor, o Bordéus naquele jogo que se ia tornando infinito.
Os anos passaram por ele, e ninguém notou.
Chegara ao Benfica com 22 anos e, de repente, não mais do que de repente, como diria Vinicius de Moraes, tinha 36.
Otto Glória não se assustou com a sua veterania no momento de entrar pelas portas que têm uma águia de asas abertas por cima do frontão. Confiou nele. Confiou sempre nele como outros haviam confiado.
Pendular, sim. E valente até à última gota de suor.
Jacinto Marques. Depois veio outro Jacinto, mais da nossa memória, da memória dos da minha geração.
Certo dia olhou para dentro de si próprio e decidiu que chegava. A insustentável irreversibilidade do tempo.
Os músculos, as articulações, os reflexos mudaram. O seu futebol feito de paixão e entrega, sempre físico, sempre de manga arregaçada, sempre de confronto peito a peito, era excessivamente exigente para a sua exigência.
Disse adeus com a humildade dos grandes nomes.
Sem dramas nem arrependimentos.
Fizera o seu trabalho. Tão honestamente como disputava cada lance. Do Liberdade ao Benfica."

Afonso de Melo, in O Benfica

3 comentários:

  1. Outro belo texto. Como são todos os que escreve.
    Obrigado, Afonso.

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  2. E obrigado ao Indefectível, que os publica. Lei-os no nosso jornal, e releio-os aqui.

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  3. Simplesmente Lindo esta mensagem que escreve sobre o meu herói e querido Avô, muito obrigado arrepiei e chorei :)

    Ass- Jacinto Marques (Neto)

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