"Papelinhos atrás de papelinhos, a cair, ecrã abaixo. Cinzentos e brancos, monocromáticos. Boca aberta, cara de parvinho e não de parvo, que aos quatro anos ainda temos direito a diminutivo, num rés do chão nas Patameiras, Odivelas.
Casa de tios, primos de sangue e emprestados, espectadores como eu. Não sei se me explicaram, ou se perguntei, embrenhado naquela salgalhada analógica, em que tudo se confundia e hoje já só há no youtube. Ou nos arquivos da RTP.
1978, parece pré-história. A Argentina joga para ser campeã, para gáudio da junta militar de Videla, Massera e Agosti, anticomunista e antiperonista, o que quer que isso fosse nesse período do Neolítico. Não consta que señor Osvaldo, número 1 nas costas, tenha inventado naquelas canchas o cabrito à-Ardiles, muy seu. Caros, não se trata de culinária. Bola levantada pelo calcanhar por cima da cabeça e do miserável boche que o marcava, gravado em filme para exibir três anos depois, com Pelé, Van Himst e Moore, e esse mítico guarda-redes, lenda de todos os tempos, de nome inconfundível: Stallone.
A bola em câmara lenta, os olhares em cima dela. A elegância de um Nureyev no Quebra-Nozes.
Vem 82 e o Naranjito, e Maradona anda por lá sem que me aperceba. Aqui entre nós, que ninguém nos ouve, até sou capaz de ter torcido pela Itália, e por Paolo Rossi. Sim, calma, não repitam.
Shiu!
Sei, agora, que foi heresia, quase de certeza um palavrão a ver com a igreja, e eu praticamente nunca lá fui. Fracos contra fortes, e sempre tenho pena de quem deles nada se espera. Por mim, estava bem se ganhassem. Digo que foi assim, e talvez tenha sido. Aos oito anos, escapa-nos tanta coisa! O futebol perde o romantismo no Sarriá, o Brasil a sua inocência, e eu ainda era novo para saber dessas coisas.
O meu Mundial tem de ser o de 86, no México. O do Azteca. Estugarda é ainda quadro fresco, quando Carlos Manuel volta a marcar e Portugal vence a Inglaterra. Futre é dos melhores do mundo, mas não chega para o 11 de Torres, que continua a sonhar todos os dias, até que a imagem se estilhaça com a perna de Bento.
Josimar é um maluco que atira do meio-campo, e já sei quem é Maradona, de quem dizem que é o melhor do mundo. Se faço de conta que não sei, ele lembra-me, abana-me e saio para a rua enlouquecido a perguntar se tinham visto o cometa que acabara de passar.
À falta de conseguir ser Diego, reinventei um Negrette em espelho, para o pé direito, num minifúndio baldio aos altos e baixos, depois de fintar raízes e ervas daninhas. Acertei em cheio no poste plantado há um dia, depois de arrancado das obras. É assim o melhor não-golo da minha vida.
Ainda no chão, já discutiam. O mais jeitoso da outra equipa apontava para o pior, que não era lateral-direito porque num seis-para-seis ou seis-para-sete
Para que ninguém fique de fora...
não há essas complicações tácticas. Aí o pior vai quase sempre à baliza, e risquem o advérbio se for gordo. Sai um calduço e a pergunta, pouco mastigada
Estavas a dormir, não era?
Eu a amaldiçoar a vida. É pena! Seria primeira página no meu jornal imaginário.
Quatro anos depois, Maradona tem ainda mais massa gorda, mas não é desta que vai à baliza. É ele quem, sozinho, mata o Brasil, ainda um pouco romântico, com aquele passe de mágica para Caniggia. A Argentina chega à final também porque o guarda-redes magricela Goycoechea, suplente de Pumpido, defende todos os penáltis e mais alguns. Ao jeito do de Stallone, mas a sério, sem estar escrito no guião o lado para onde as bolas iam. Ganha a Alemanha, mas não é novidade. Lineker está lá, e repete o pensamento filosófico de um compatriota
São 11 contra 11 e no final...
Matthäus tem menos talento que Maradona, mas a coroa é sua, depois de uma batalha campal e de um penálti de Brehme.
1994. Romário, Bebeto e... Dunga. Menos romântico ainda. Hagi e
Raducioiu! Já perdeu tempo de remate... Golo!
Stoichkov, Letchkov, Kostadinov e Balakov. Bergkamp. E Maradona, o golo à Grécia e o adeus por doping.
1998. Ronaldo Fenômeno e Zidane. Suker, Prosinecki e Boban. Outra vez Bergkamp, e Kluivert. 2002. Ronaldinho e o livre que retorce o bigode de David Seaman, Ronaldo, Rivaldo, Roberto Carlos e... Roque Júnior. Também Oliver Kahn, apesar do frango na final. 2006, e outra vez Zizou, com Henry. Também Cristiano Ronaldo, Deco e Figo. Pirlo, Totti e Del Piero. 2010. Xaviniesta. Villa. Robben, Van Persie e Sneijder. Messi. Forlán. 2014. A Mannschaft inspirada por Guardiola. Neymar. Messi, claro, outra vez.
Agora, Rússia. Com amor. Já não imito Negrette, nem sou capaz de sair em drible como antes. Desta vez, quem quer que eles sejam têm de jogar também por mim.
Comecem lá isso, antes que arrefeça!"
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