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quarta-feira, 17 de maio de 2017

O líder pacato que não deve nada à sorte

"Às críticas e provocações iniciais – que amiúde se continuam a ouvir aqui e ali –, Rui Vitória respondeu com trabalho... e dois campeonatos

A bomba rebentou a 4 de Junho de 2015: após seis anos de muitas conquistas e algumas desilusões, Jorge Jesus ia trocar o Benfica pelo eterno rival do outro lado da Segunda Circular. Seis dias depois, Rui Vitória era oficializado como novo treinador das águias, bicampeãs em título e em busca de um tri que fugia desde 1977.
Longe de ser um desconhecido do futebol nacional – já com uma presença na final da Taça da Liga pelo Paços de Ferreira (derrotado pelo Benfica) e outra na final da Taça de Portugal (bateu... o Benfica), a contratação de Vitória foi porém recebida com desconfiança por uma enorme fatia dos adeptos encarnados. O perfil do novo técnico estava longe de se assemelhar ao do anterior, que se havia tornado no mais titulado da história do clube – e nem o conhecido benfiquismo de Vitória retirava o ar carrancudo a quem duvidava.
A ideia de Luís Filipe Vieira era simples: fazer igual – ou melhor – com menos. Investimento, pois claro. “Um treinador ganhador e sem medo de apostar nos miúdos”, disse o presidente encarnado na hora da apresentação. Tudo começou mal: a pré-temporada, a derrota na Supertaça frente ao... Sporting de Jesus, a entrada em falso no campeonato até ao 0-3 na Luz novamente perante os leões. Por esta altura, Rui Vitória era insultado, humilhado e enxovalhado em praça pública, tanto pelos adeptos dos rivais como por grande parte dos seus.
Um ano e vários meses depois, o homem nascido há 47 anos em Alverca do Ribatejo, que “aprendeu” a tocar bateria por gostar do som que ouvia quando batia nas portas de casa, em criança, celebra a conquista do segundo título consecutivo, conduzindo o Benfica ao primeiro tetracampeonato da sua história. Para trás ficou uma carreira mediana como jogador – o máximo que conseguiu foi fazer uma época pelo Alverca na II Liga –, no meio da qual cursou Educação Física; conheceu o flagelo dos salários em atraso já como treinador, primeiro logo na experiência inaugural, no seu Vilafranquense – pelo qual assinou uma semana depois de ter perdido os pais, num acidente de viação, em Setembro de 2002 –, e depois num profissionalíssimo Vitória de Guimarães; e ainda se aventurou pela escrita, adaptando o clássico “Arte da Guerra”, de Sun Tzu, para a realidade do futebol.

A arte de bem dialogar
Em entrevista ao “Expresso”, Rui Vitória professou um dia a seguinte ideia: “Antes de mais, um jogador é um ser humano. Se conseguir entrar dentro do ser humano, consigo chegar ao jogador; se quiser começar pelo jogador, talvez não consiga chegar ao ser humano e poderei ter problemas. Os futebolistas são bem pagos, ok, mas têm pais que têm problemas, filhos que têm problemas, mulheres, namoradas... Tudo isto tem importância no rendimento deles. Não tenho de andar a coscuvilhar, mas tenho de conhecer o homem; às vezes, damos um abraço; outras, uma marretada nas costas [risos]”.
Pegando neste mote, o i foi ouvir gente bem conhecida do treinador do Benfica: um ex-colega, um ex-treinador e um ex-jogador seu. Dos depoimentos dos três salta uma conclusão óbvia: Rui Vitória é um mestre na arte de motivar. “Nota-se que ele conseguiu formar um grupo de trabalho unido. Aquela equipa do Benfica é uma verdadeira família”, salienta Pedro Xavier, seu treinador no Alcochetense em 2002/03. “Uniu o grupo em torno de uma causa, fez das fraquezas forças. A maneira como os suplentes vão festejar os golos com os titulares, todos unidos... É um conhecedor exímio da parte técnica e táctica, claro, mas fez da motivação um factor fundamental no Benfica”, realça Pedro Correia, treinado por Vitória em três fases: juniores do Benfica, Fátima e Vitória de Guimarães e hoje a actuar na Académica. Carlos Fernandes, que com ele conviveu enquanto jogador no Vilafranquense, recorda um “verdadeiro líder” dentro e fora do campo. “Era um grande capitão. Sabia falar e estar com qualquer pessoa. Era ele quem negociava os prémios de jogo com o presidente, tinha muita maturidade. Nós, os mais novos, tínhamos muito respeito por ele. Tenho a certeza que uma das suas grandes chaves para o sucesso como treinador é a sua capacidade de diálogo, foi assim que segurou os jogadores. Por exemplo: nunca vi o Jiménez com azia, apesar de ter jogado muito pouco. E agora acaba a época a ser decisivo. Isso de certeza que é fruto do que o Rui Vitória fala com ele nos treinos”, frisa o antigo guarda-redes de Boavista, Rio Ave ou Steaua de Bucareste, entre outros.
Carlos, de resto, vê o actual treinador do Benfica com a personalidade intacta em relação ao que era enquanto médio: “Era muito inteligente, pensava muito o jogo. Jogava mais ou menos na posição oito. Mostrava muita serenidade, muita tranquilidade. Era um pensador. Até os árbitros o respeitavam muito por isso, era bem visível. Sempre foi uma pessoa justa, ajudava muito os jovens, dava-nos a mão. E hoje continua igual: uma pessoa calada, discreta, que só quer fazer o seu trabalho. Quanto mais despercebido passar, melhor.” Pedro Xavier tem a mesma percepção. “Quando foi meu jogador, era o mais velho do plantel e já dava muitas indicações aos colegas. Era o cérebro da minha equipa, tecnicamente superior, pensava o jogo todo. Hoje, é um líder pacato, tem as ideias dele e foi assim que conseguiu ter sucesso: treinar e calar. Sempre esteve à altura nas polémicas e sempre respondeu com resultados dentro do campo”, enaltece o antigo técnico.
Pedro Correia já não conheceu Rui Vitória enquanto jogador, mas não esconde o impacto positivo que os juniores do Benfica sentiram quando o então jovem treinador assumiu a equipa. “Era jovem, mas já tinha as suas ideias muito bem definidas e claramente estava talhado para voos maiores. Foi notória a diferença para as equipas técnicas anteriores, em termos de metodologias de treino, que eram muito inovadoras. Os treinos eram sempre com bola, mas ao mesmo tempo dava muita atenção à parte táctica, tanto defensiva quanto ofensiva”, lembra o lateral-direito, que voltaria a encontrar o técnico no Fátima e mais tarde em Guimarães: “No Fátima, ele estava igualmente ambicioso, mas com uma diferença significativa: tinha integrado o Arnaldo Teixeira na equipa técnica, que além de ser um profundo conhecedor, tem um lado humano muito forte, é uma pessoa muito próxima dos jogadores. Complementa bem com a parte da autoridade do Rui Vitória. Foi uma mescla perfeita. E depois, durante a época, ainda juntou à equipa técnica também o Sérgio Botelho, que fazia parte do plantel, o que também ajudou muito. No Vitória só lhe tenho a agradecer, pois deu o aval para a minha renovação mesmo com a grave lesão [fractura na tíbia]. Outro treinador qualquer podia dizer ao presidente que eu não fazia parte dos planos, por estar lesionado, e dispensava-me, mas ele não o fez.”

“Mágico” e “Del Bosque português”
Desde o início, Rui Vitória teve de lidar com as comparações com o seu antecessor. Na pior fase da passagem pelo Benfica, choveram as críticas, com a Comunicação Social desportiva e os próprios adeptos encarnados a questionar o seu pulso para lidar com grandes vedetas, a exemplo do que parecia acontecer com Jesus. Teriam essas dúvidas alguma razão de ser? Na opinião de Pedro Correia, nem por sombras. “Nada disso! Se há coisa que ele tem é mão no grupo e autoridade. Tem a sua maneira de ser, mas quando é preciso dar um berro e uma reprimenda também o faz. É um motivador nato e sabe como retirar o maior rendimento possível dos jogadores. A sério: autoridade não lhe falta”, reforça.
Pedro Xavier é mais taxativo, mas com a mesma conclusão: “Qualquer treinador que chega a um grande pode ser campeão. Desde que beneficie de um conjunto de factores: condições, bom plantel... e conseguir ter os jogadores na mão.”
No currículo, além dos títulos, tem outras distinções de mérito. Como ter sido considerado pelo prestigiado jornal italiano “La Gazzetta dello Sport” um “treinador mágico”, após vencer a Taça de Portugal pelo Vitória de Guimarães com grande parte da equipa formada por jogadores oriundos da equipa B, ou ainda ser comparado ao mítico técnico espanhol Vicente Del Bosque pela agência EFE. 
Pelas mãos, passaram-lhe várias pérolas do futebol português actual, muitos dos quais chegaram a internacionais (André André, Paulo Oliveira, Ricardo Pereira, Pizzi, Nélson Oliveira, André Santos ou, já no Benfica, Nélson Semedo, Renato Sanches, Lindelof ou Gonçalo Guedes). Em 14 épocas como treinador, nunca foi despedido – e talvez não seja obra do acaso. “Uma boa época pode ser fruto da sorte, de ter um bom plantel. Agora, quando começam a ser dois, três, quatro bons trabalhos em clubes diferentes... é porque as coisas estão a ser bem feitas”, sentencia Pedro Correia."

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