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terça-feira, 11 de agosto de 2015

O estranho caso dos marinheiros enjoados

"Houve um tempo em que os ingleses, só por o serem, serviam como adversários valiosos para qualquer equipa do Mundo. Mesmo que não passassem de uma tripulação de navio de passagem por Lisboa e a caminho de Casablanca e da Madeira...

Era uma vez um navio. Chamava-se SS Ardeola. SS quer dizer «Screw Steamer», propulsão a vapor, para se diferenciar dos entretanto desaparecido barcos de propulsão a pás. Enfim, inglesices.
O Ardeola era um navio elegante, de passageiros, com três mastros, construído em Dundee em 1912 e propriedade da Yeoward Line. Durou pouca a sua vida de transportador de ansiedades e de vaidades dos 80 figurões que se passeavam no deu deck de primeira classe. Rapidamente, o espírito prático falou mais alto. E o Ardeola transformou-se num cargueiro especializado no comércio de fruta na rota de Liverpool-Lisboa-Casablanca-Madeira-Canárias.
Ardeola é nome de pássaro, aparentado com a garça. Ao que consta, este Ardeola do qual hoje vos falo era já o terceiro com a mesma designação depois do desaparecimento dos dois outros homónimos anteriores, um deles, o primeiro afundado ao largo de Leixões. Mera informação sem importância de maior. Registado em Liverpool, onde reina outra passaroco misterioso, o «liverbird», que se traduzirá à letra por pássaro-do-fígado, esse que brilha nas camisolas do grande Liverpool, já tantas vezes adversário do Benfica, não ficaria o Ardeola isento de influência futebolística com direito a um episódio a merecer crónica dedicada aos que vão tendo a bondade de me ler.
Porque no dia 28 de Novembro de 1920, o SS Ardeola, de Liverpool, estava em Lisboa e a sua tripulação iria medir forças com os jogadores do Sport Lisboa e Benfica numa peleja de mais puro «association».
Estávamos na ressaca da I Grande Guerra.
A actividade do Futebol internacional morrera praticamente.
O Benfica, por exemplo e bem a propósito, depois de disputar oito jogos internacionais em 1916, viu-se reduzido a um em 1917 (frente aos ingleses do AMS Flavia), a mais um em 1918 (frente ao Sevilha) e a uns mais compostos nove em 1919. 1920 voltou a ser ano de vacas magras, um só confronto contra jogadores além fronteiras, precisamente aquele que aqui nos traz.
Em Novembro, um cabaz de Natal
E assim, no dia 28 de Novembro, o Benfica defronta uma equipa composta pela tripulação do SS Ardeola, de Liverpool.
Não estranhem: nesse tempo os ingleses tinham um prestígio tão imenso no que ao Futebol dizia respeito que jogar contra onze súbitos de sua majestade (Jorge VI na circunstância) era um orgulho para qualquer mortal, mesmo que os tais onze súbitos tivessem um conhecimento tão profundo do jogo como qualquer um de nós tem das malfadas «kidney pies», prato de resistência dos bons e velhos «pubs».
Enquanto em Portugal o primeiro jogo de Futebol teve como alicerces o famoso grupo britânico que, em Carcavelos dedicava as suas horas de trabalho ao lançamento do cabo submarino, dentro em breve responsável por nos colocar em condições de fazer chamadas interurbanas para o lado de lá do Atlântico, na América do Sul eram os marinheiros ingleses que arribavam aos portos de Santos, Rio de Janeiro, Kontevideu e Buenos Aires a espalharem pelo continente a paixão pelo pontapé na bola. E de tal ordem, imagine-se, que Buenos Aires albergou mesmo uma Liga de Futebol da Marinha Mercante composta por nada menos de 19 equipas.
Nenhuma delas era a do nosso Ardeola de Liverpool, como está bem de ver. A nave não se lançava a tão largo, ficava-se pelas costas da Europa e da África do Norte.
Quanto ao outro Liverpool, o Liverpool FC, preparava a construção de uma equipa tremenda que venceu o campeonato inglês em 1922 e 1923, conhecida pelas alcunha de «The Untouchables».
Mas deixemos isso. Voltemos ao mar. E aos marinheiros que desembarcavam em Lisboa e prometiam momentos de Futebol maravilhoso, inglês e brilahnte.
Um desastre!
Longe do balanço dos convezes, deu-lhes um estranho enjoo.
Ninguém conhecia os seus nomes e não era preciso. Sendo ingleses, deviam ser mestres em futebol. Não eram. Eram apenas marinheiros.
O Benfica e o público lisboeta já tinham sido levados ao engano três anos antes com a presença dos tripulantes do AMS Flavia, da Cunard Line, a empresa anglo-americana de correio marítimo. Tão desarrumados em campo, tão pouco capazes de tratar decentemente uma bola, viram-se goleados por 0-7.
Agora seria ainda mais calafriante.
O AMS Flavia foi torpedado no ano seguinte, em 1918, e dele não houve mais notícias. Agora, o SS Ardeola trazia Liverpool no nome e prometia algo de mais suculento.
Ora batatas! Vítor Gonçalves, José Simões, Ribeiro dos Reis, Belford e Jesus Crespo afundaram a equipa inglesa com onze golos. Onze! Sim: 11 a 1, foi o resultado. Lá está, um enjoo.
Foi de tal ordem a diferença que nem na «História do Sport Lisboa e Benfica» de Mário Fernando Oliveira e Carlos Rebelo da Silva o episódio tem direito a mais do que um simples parágrafo: «(...) um desafio realizado em 28  de Novembro de 1920, contra o Ardeola, equipa inglesa de Liverpool que estava de passagem em Lisboa. O Benfica destroçou os visitantes por completo, batendo-os por 11-1. A diferença dá bem ideia do desequilíbrio de valores. Foi um jogo sem história».
E só.
Terá servido de emenda. Os adversários passaram a ser escolhidos com mais critério e os ingleses deixaram de ser endeusados só por serem ingleses e ter sido um deles a inventar o Futebol.
Quanto ao SS Ardeola, teve uma vida de aventuras, levando a bordo muitos dos derrotados dessa tarde portuguesa. Viajou pelas costas da Adissínia aquando da invasão italiana, foi capturado pelas forças francesas de Vichy na II Guerra Mundial e entregue aos alemães, terminando na posse da marinha de Itália com o nome de Aderno. No dia 23 de Julho de 1943, foi torpedeado pelo submarino Torbay, da Royal Navy, em frente a Civitavecchia.
Tinham decorrido quase 23 anos sobre o desastre de Lisboa."

Afonso de Melo, in O Benfica

2 comentários:

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