"No português de Angola - tão, tão português como o do Brasil - há uma expressão que define bem a presença da selecção nacional no Mundial: desconseguida.
BRASÍLIA - A festa continua do lado de lá do Atlântico depois do regresso português. Regresso afadistado, sem futebol nem samba. Sabemos todos que estás em festa, pá, diria o Chico Buarque que eu, sem vergonha nem pejo, tratei de usar como auxílio para escrever estes textos sobre o Campeonato do Mundo e, já que aqui chegámos, ao último de todos eles, levarei o abuso até ao fim.
Dizer que o regresso foi triste, não vale, Chico! Foi tudo triste. O País Triste no Mundial Alegre. Outros foram mais tristes ainda? Seja. Sempre pudemos bem com a desgraça alheia, não é? Há léguas a separar as penosas exibições portuguesas, sem chama nem garra, das entusiasmadas tardes e noites de tantos que levaram para o Brasil a vontade de tornar diferente a sua vidavidinha do dia a dia. Um Campeonato do Mundo é algo de gigantesco - único! Foi por causa de um Campeonato do Mundo que Pelé ficou para sempre Pelé (no caso, foi por causa de dois), que Cruyff ficou para sempre Cruyff, que Maradona ficou para sempre Maradona e que Eusébio ficou para sempre Eusébio. Que a carreira de todos eles se estendeu muito para lá das fronteiras dos Mundiais, tal como as areias de Itapuã se estendem ao fim da tarde com uma cachaça de rolha e o diz-que-diz-que macio que brota dos coqueirais, ninguém tem dúvidas. Mas que foram os Campeonatos do Mundo que os encaixaram na fileira estreita dos mitos e das personagens infinitas da história do futebol, também não permite que se questione quem quer que seja.
Cristiano Ronaldo passou como a banda ao lado do Mundial que deveria ser o seu. À toa na vida, à toa uma equipa que não soube merecê-lo e não tinha qualidade para o acompanhar, à toa num sistema de jogo que não escondeu as debilidades físicas de que sofria. A meninada pode ter-se assanhado nas bancadas à simples menção do seu nome. A namorada que contava as estrelas pode ter parado quando viu o seu semblante preocupado no ecrã da televisão. O faroleiro que contava vantagem pode ter parado com medo de fazer figura de fraco face a um momento mágico que ele pudesse tirar do seu pé direito. O homem sério que contava dinheiro também pode ter parado na esperança de ver nele mais um negócio de milhões. Mas para desencanto de todos, o que era doce acabou.
É preciso navegar e navegar...
Estamos ausentes. Quantas mais vezes estará Portugal ausente dos Campeonatos do Mundo? Vendo bem só esteve verdadeiramente presente em dois: 1966 e 2006. Quarenta anos a nos separar. Os jornais brasileiros escrevem: «Portugal não tem histórico em Mundiais». Há quarenta anos, por exemplo, a Holanda apresentava-se pela terceira vez na fase final de um Campeonato do Mundo. As anteriores tinham sido pífias, próprias de um futebol absolutamente amador. Daí para cá, oito presenças - três finais, um quarto lugar, uns quartos-de-final, e agora? Veremos. Isto é ter histórico. Dizem os brasileiros e digo eu.
Fico contente por sabê-los em festa. Não precisam de guardar um cravo para mim; não precisam de mandar urgentemente um cheirinho de alecrim. Colhi pessoalmente uma flor no teu jardim, Chico, voando de Lisboa a Salvador, a Brasília e a Manaus, pé á beira rio centro das seringueiras. Sei - sabemos todos - que há tanto mar a nos separar e que é preciso, pá, navegar, navegar. Gerações ascenderam e caíram como os impérios. Outras virão. Não serei capaz de dizer quando. Vai para lá dos dotes adivinhatórios de quem se limita a correr o Mundo atrás do futebol e da vida, sempre com necessidade de analisar, de compreender, de interpretar e de escrever sobre o que vê e sobre aquilo que fica para lá do simples entendimento, esse lugar onde se esconde a banal filosofia dos homens que erram, se erguem e se repetem.
Sei que é Inverno para lá do Equador. Mas pode ser que por lá, de Fortaleza a Porto Alegre, de Natal ao Rio de Janeiro, cantem a Primavera que nos faz falta e não sabemos quando virá. Murcharam a nossa festa, pá. Ficámos carentes. Apesar de tudo, obrigado Chico!"
Afonso de Melo, in O Benfica
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