"Não há coisa que me tire mais do sério do que a falta de civismo. Essa espécie de egoísmo misturado com inimputabilidade que em Portugal dá frequentemente à costa em modo de chico-espertismo.
Numa crise que testa a nossa resiliência enquanto comunidade, o pior inimigo é aquele que não tem sequer vaga ideia do que é cuidar do bem comum.
Tanto quanto do vírus, temos de nos salvar dos irresponsáveis, dos ignorantes. Enfim, da estupidez humana, que pode ser infinita mesmo numa imensa minoria.
Para uma consciencialização em massa, talvez não fosse má ideia no próximo domingo de sol colocar ecrãs gigantes nas praias a passar uma reportagem da Sky News em que se mostra o caos que se vive numa unidade de cuidados intensivos do Hospital de Bérgamo – que com quase 6 500 casos confirmados é a província mais afectada de Itália.
Talvez assim ficasse evidente por cá quão «má onda» é passear pateta-alegremente na marginal ou ir à praia quando há um país inteiro de quarentena e um concelho isolado com um cordão sanitário.
O alerta está dado e difunde-se a cada dia que passa. Nas notícias das mais diversas áreas também. Seja pela morte do antigo presidente do Real Madrid ou pelo contágio de desportistas tão mediáticos como Paulo Dybala ou Kevin Durant.
Se tal não chegar, atentem nos alertas que os futebolistas brasileiros Dalbert e Jonathas de Jesus, a viverem de perto a pandemia em Itália e Espanha, respectivamente, fazem aos seus compatriotas, esbracejando do lado de cá do oceano como quem avisa de um acidente prestes a acontecer perante a irresponsabilidade criminosa de Bolsonaro.
Se tal ainda assim não chegar, leiam com atenção as palavras de Massimo Cellino, o presidente do Brescia, que está no olho do furacão, na segunda província mais afetada de toda a Itália – Brescia tem cerca de 6 000 casos e situa-se no coração de uma região, a Lombardia, que em escassas semanas conta mais de 27 mil infectados e perto de 3 500 mortos.
Homem de negócios controverso, com condenações por corrupção, fraude e falsificação de documentos, Cellino parecia visivelmente em pânico por estes dias quando falava ao Corriere dello Sport sobre a pandemia.
«A época acabou, este vírus é pior do que a peste. A vida está em primeiro lugar! Sempre! A vida, f***-se! Há adeptos que levam oxigénio aos hospitais e há outros ainda que choram mortos, gente entubada... Só penso nos que vão morrer, não em quem vai perder o campeonato», alertava.
Pelo meio, fazia um relato dramático da sua própria vulnerabilidade: «Estou em casa com febre há três dias e em quarentena há onze. Encontro-me fechado, estou sozinho, a minha mulher está presa em Cagliari. Tenho um filho em Milão, os outros lá fora de Itália e eu já vi e ouvi coisas que você nem imagina. Recebo todos os dias notícias de Brescia e todas são de loucos [...] Tenho até medo de sair de casa, estou a entrar em depressão…»
O relato impressiona.
Por ignorância ou comodismo, quem passeia descuidadamente lá fora não terá noção do tsunami que aí pode surgir. Nem terá o desígnio maior de se sacrificar por pouco que seja para evitar um possível colapso do Serviço Nacional de Saúde.
Se não forem lá pelo respeito consciente, que vão pelo medo mais primário. Ou, em último recurso, pela repressão, que é para isso que o estado de emergência há de servir.
Situações de excepção como aquela que vivemos servem para sobrelevar o que de melhor há em nós. A solidariedade, o humanismo, a responsabilidade cívica. Por outro lado, acabam por desvendar, numa minoria, o pior: do açambarcamento de artigos de primeira necessidade ao desprezo pelo esforço dos outros.
Livrai-nos da inconsciência, da irresponsabilidade, do «Deus por todos, mas cada um por si».
Mais do que a pandemia, temo o pandemónio."
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