"Dia 523 da quarentena.
O mundo continua a dar-nos razões para sorrir, excepto se olharmos para um ecrã, qualquer um, e observarmos o que se passa no mundo ou em nossa casa. A minha mulher continua a tolerar estoicamente a minha presença. Os filhos revelam-se uma espécie de corrida Iron Man da paciência. Decidi proibi-los de fazer uma daquelas tarjas a dizer “vai correr tudo bem”, pelo menos até se anunciar a mutualização da dívida.
Voltei a experimentar a app de meditação do Sam Harris, mas a minha atenção espasmódica não sobreviveu a um primeiro enquadramento teórico sobre como respirar.
Continuo a sentir que a maioria dos podcasts foram feitos para nos ajudar a adormecer e que talvez um dia estejamos preparado para falar abertamente sobre isto.
Essa curva parece estar longe de achatar.
Apesar de tudo, entendi que a minha resiliência nas primeiras 24 horas da quarentena justificava um prémio e encomendei uma PS4. Passei mais tempo a configurá-la do que a jogar. Já tinha saudades de alguma burocracia na minha vida.
Volvidas doze derrotas consecutivas na última divisão do FIFA20, dei por mim a concluir que sou uma espécie de Carlos Azenha desta comunidade. Não jogo há 3 dias. Os meus filhos continuam a perguntar o que é aquele objecto estranho escondido atrás do ecrã (o comando). Explico-lhes que é um brinquedo para adultos e solto uma gargalhada de javardo. A minha mulher continua a tolerar estoicamente a minha presença.
Os eventos desportivos são agora uma visão do passado. Analistas de futebol entretêm-se a recordar a disposição tática de um Somália - Equador no Mundial Sub-17 de 2003. Páginas de memes tentam fazer-me rir com a mesma piada.
Pessoas que até aqui faziam prognósticos sobre onzes titulares e resultados de jogos de futebol apostam agora as suas poupanças no número de infectados de amanhã. Diferentes clubes de futebol assumem que eu estou interessado em saber o que é que um futebolista profissional faz em casa.
O WhatsApp revela um efeito de contágio superior ao do Covid-19. A falta de noção cresce exponencialmente. O Canal 11 apresenta a “semana do Euro 2016” como se metade da programação anterior não tivesse sido dedicada a isso. O Gabriel está apto, mesmo a tempo de coisíssima nenhuma. O Taarabt deve ter voltado a beber. Eu faria o mesmo, se alguma vez tivesse parado.
Recuperando a gíria futebolística, estamos todos à espera que o telefone toque, mas em vez de uma chamada do director desportivo do Bali United a perguntar se temos interesse em conversar, desejamos apenas uma notificação que diga “Última Hora: Futebol Regressa na Próxima SemanaL”.
Há uns meses perguntaram à então candidata democrata Elizabeth Warren o que a tinha feito mudar tanto de opinião nas últimas décadas relativamente a certos temas e ela explicou que é precisamente isso que faz dela progressista.
Sinto que devo utilizar a mesma lógica para vos explicar que qualquer intervenção minha em que eu tenha dito que não queria jogos à porta fechada deve ser desconsiderada desde já. Apesar de compreender o momento periclitante que vivemos, eu dispenso o meu momento churchilliano e passo já para o meu manifesto taberneiro.
Eu tenho um sonho.
O sonho de que já amanhã Pedro Proença anuncie uma espécie de Liga NOS em versão estilo Hunger Games. Cada clube selecciona os onze homens mais saudáveis que tiver e fecha-os no estádio municipal de Leiria, que há muito merece acolher uma prova deste gabarito. Ganha a equipa que sobreviver. Depois sim poderemos finalmente demolir o estádio.
Ou não, ou não. Bem sei, amigos. Estamos juntos nesta luta. É fundamental que todos possamos sobreviver e que, mais unidos do que nunca por esta difícil provação, cheguemos plenos de saúde à fase seguinte das nossas vidas: um clusterfuck social e económico que nem um estúdio de Hollywood se lembraria de narrar em filme.
Ou então não, e talvez isto seja, como alguns optimistas insuportáveis têm repetido, uma oportunidade para nos reencontrarmos enquanto espécie, olharmos à nossa volta e reflectirmos. Como é mesmo? O planeta é o paciente, os humanos são a doença e o vírus é a cura.
Foda-se. Socorro. Eh Pá.
Qualquer coisa. Não me venham com os vídeojogos, por favor. Vi 2 minutos disso no fim de semana e senti o meu cérebro a mirrar. Não sei. Entretenham-nos. Se querem mesmo malta a jogar na consola, sejam menos óbvios.
Quero ver Jorge Jesus contra José Mourinho numa partida de FIFA comentada por Gabriel Alves. Levem o Madjer para Carcavelos e façam um live stream dele a repetir pontapés de bicicleta. Se alguém tentar assistir no areal, leva um pontapé idêntico. Peçam ao Ronaldo para fazer um baliza a baliza com o Quaresma, no mais estrito cumprimento das regras de distanciamento social. Transmitam o próximo jogo do Ronaldinho Gaúcho na prisão com comentários do Fábio Paim a partir de outro estabelecimento prisional.
Um sinal de que há bola ao fundo do túnel. Qualquer coisa. Assim não vamos aguentar muito mais."
Sem comentários:
Enviar um comentário
A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!