"Estava a trabalhar no estádio, o que fez deixou Mário Coluna boquiaberto; Antes tivera de chegar nu a casa
1. O pai era operário da Mundet, empresa de cortiças no Seixal. O fascínio pela bola soltou-se-lhe cedo - e aos primeiros tempos de escola, percebeu-se-lhe o desprendimento: em vez de ir para as aulas atirava-se, amiúde, aos jogos vadios pela vila. Pelos oito anos sucedeu-lhe o que contou, vida fora, divertido: que certo dia, suspeitando que ele não estava onde devia, a mãe correu a procurá-lo e encontrou-o num Benfica - Sporting entre a malta, a jogar de cuecas (para não sujar o resto da roupa e assim se denunciar): «Não me apercebi dela a tempo de fugir, a minha mãe agarrou-me exactamente pela ponta de cueca, rasgando-a. Consegui escapar-lhe, mas, ao entrar em casa, estava nu - e, depois, claro, não me livrei do tareão».
2. Mal terminou a instrução primária, foi uma oficina de canalizador. Tinha 12 anos e Carlos, irmão mais velho, levou-o o Arrentela. Um dos patrões era pessoa influente no Benfica, vendo-o num jogo perguntou-lhe se queria ir a uma experiência à Luz. Num alvoroço lhe respondeu que sim - e lá ficou...
3. Andando pelos 15 anos, coube-lhe ir ao estádio tratar de problema de canalização que lá houve. O trabalho dava para o campo onde se treinavam o Eusébio, o Coluna, o Simões, o José Augusto, o Torres, o Costa Pereira... Não desgrudava olhos vidrados dos craques, por causa disso levou do patrão valente puxão de orelhas (e não em sentido figurado).
4. Voltou ao concerto da canalização, mas, de súbito, vendo bola a saltar na sua direcção, largou a ferramenta, em voo se lançou a ela, defendendo-a, acrobático. O mestre, soltou-lhe, num grito, nova fúria: «Agora, atiras-te para o chão, malandro?! Deixa os homens - e trabalha!» Do campo, alguém lhe bateu palmas, largando-lhe, em brado: «Que grande defesa!» Era Coluna - e ele, muito tímido, murmurou-lhe: «Sabe, senhor, eu jogo aqui, nos principiantes». Oito anos depois, estava à beira deles - e não tardaria também que com eles jogasse a final da Taça dos Campeões Europeus...
5. Ao chegar a sénior, emprestaram-no no Amora - e em 1964-1965 foi para o Seixal (que subira à I Divisão) e nessa época teve uma tarde de paraíso (a do empate 0-0 no Campo do Bravo em que defendeu tudo - e muito do que defendeu se achava impossível...) e teve uma de inferno (a tarde em que o Seixal perdeu na Luz por 11-3 - e a consolação foi ouvir que não fora mão cheia de defesas incríveis seria pior).
6. Do Seixal passou para o Atlético (com José Águas a treinador) - e na Cova da Piedade sofreu insólita expulsão: «Começaram a chover pedras em minha direcção. Atrás delas veio tábua também. Eu, pensando no perigo que aquilo era, comecei a juntar as pedras num montinho e sobre elas coloquei a tábua. Fi-lo para que ninguém se magoasse, mas o fiscal de linha chamou o árbitro para lhe dizer que o que eu fizera fora provocação - e ele, injusto, pôs-me na rua».
7. A temporada de 1966-1967 ainda a passou quase toda nas reservas - a suplente de Costa Pereira ainda lá estar, Fernando Riera deu-lhe, porém, a baliza contra a Académica na Taça - e nesse sua estrela em Coimbra sofreu dois golos de Ernesto que eliminaram o Benfica. Na seguinte, já sem Costa, foi-lhe a baliza para as mãos - e rasgou, fulgurante, a história como Zé Gato.
8. Ainda houve um tempo em que o cognome que lhe colaram à pele foi O Gigante de St. Étienne (deram-lho jornais franceses pela «monstruosa» exibição que lá fez a caminho da final da Taça dos Campeões, essa de 1967 - 1968 que não ganhou em Wembley ao Manchester United porque, no último minuto, Eusébio, lesionado, falhou um daqueles golos que o Eusébio nunca falhava...
9. Após Hagan deixar, zangado, de ser treinador do Benfica, na Festa do Eusébio, Fernando Cabrita ainda colocou, uma vez ou outra, Bento na sua baliza. O mesmo fez Pavic na época seguinte - e a baliza que perdera no dedo partido com o PSV, logo a recuperou. Com Mário Wilson em 1975-1976 voltou a jogar mais do que Bento, depois, com Mortimore é que já não - e não deixou, aí, de largar o Benfica campeão uma vez mais, campeão pela oitava vez. (Guarda-redes deixou de ser em meados de 1982 no SC Covilhã - tinha 39 anos e, ao sair do Benfica, dois anos estivera no Funchal, a jogar pelo Nacional...)."
António Simões, in A Bola
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