"Contra um Boavista impedido de inscrever jogadores há duas épocas, a ter de recorrer a adolescentes que, há meses, estavam a descer à II divisão de juniores, o Benfica a sintonizar-se com Bruno Lage voltou a assentir no novo papel de Kökçü que assenta impecavelmente no turco para ganhar (0-3) no Bessa e de lá sair no terceiro lugar do campeonato
Quando o novato e jovem Tomé Sousa se atirou à relva de braço direito à frente, esperançoso a tentar alcançar a bola disparada de longe por Orkun Kökçü, não chegou ao remate e os dois adjetivos no mesmo adolescente ouviram, sem o ver, a bola a bater no poste. Rápido a levantar-se, olhou para trás e reparou na bola a rodopiar em si própria, a embater no outro poste e a afastar-se da baliza. Prontamente, o guarda-redes sem barba, imberbe nas feições, ainda deu dois ou três passos frenéticos na sua direção, enganado pelo que viu e não viu, por um instante a julgar que a rotação peculiar do planeta do Boavista no seu próprio eixo tivesse desalinhado a fortuna recente do clube.
Quando essa bola tocou pela segunda vez nos ferros já o golo entrara (31’), era o segundo, um 0-2 na desvantagem para uma equipa maltratada pelo alinhamento dos planetas por cima da moléstia que lhe foi causada pela gestão de um investidor estrangeiro que lhe deu dívidas. E problemas que fazem o padrão axadrezado condizer-lhe.
Enquanto o Benfica pegou no embalo da sua transformação com Bruno Lage, ia Tomás Araújo parecendo um lateral direito de verdade a correr por fora das combinações entre Di María e Aursnes, na meia esquerda, o Boavista protegia-se com o seu manto estrambólico, cosido com retalhos. Na baliza, Tomé Sousa estava lá de luvas pelo segundo jogo seguido, chamado de urgência a crescer demasiado cedo e à força devido à cósmica coincidência de dois guarda-redes se magoarem no mesmo treino e, à direita do ataque, era João Barros a juntar os seus 18 anos aos 17 de Tomé na equipa cujo avançado foi titular de uma seleção que esteve no último Europeu (o eslovaco Bozenik) e o capitão com jogos pela Colômbia e passado no Boca Juniors (Seba Pérez).
Desta miscelânea de realidades, onde internacionais convivem nos titulares com canalha que na última época descia para a II divisão de juniores, a equipa impedida há quatro janelas de transferência de inscrever jogadores, à falta de melhor resumo, fez o que pôde contra um Benfica, ao terceiro ato com Lage, a ser inclemente com o espaço que o jogo não tardou a conceder-lhe. Pela esquerda, Carreras sintonizou um pouco mais o seu entendimento com Aktürcoglou, dando ao turco a bola com que ele ziguezagueou dentro da passividade boavisteira área dentro para servir o primeiro golo (11’) de Pavlidis.
Antes do grego marcar, uma das consequências da ímpia presença de um dono da SAD inóspito no Boavista parou uma tentativa de chapéu de Aktürcoglou com as mãos que depois travariam um remate do interventivo Kökçü, radiante na sua nova função de um médio híbrido, um 8 a pairar no centro-esquerda, a receber a bola de frente para o campo e a distribuir passes a preceito.
A cara juvenil de Tomé Sousa regozijava com cada intervenção bem-sucedida, à qual se juntaram os punhos cerrados dentro das luvas, agitados com alegria, quando no raiar da segunda parte foi à relva acudir a uma bola cabeceada por António Silva e ainda se fez de muro para levar com a recarga na cabeça, um gaiato a suster o ímpeto que o inclemente Benfica, sem querer saber de infortúnios axadrezados. Além de umas amanteigadas mãos que não sustiveram uma cabeçada de Otamendi e de ver Aktürcoglou repetir uma tentativa de chapéu, o guardião com idade de júnior não faria muitas mais paradas, nem teria arrelias de maior.
Apesar de períodos de avalanche na direção da área do Boavista, com Pavlidis a recuar um pouco para se dar em apoio e o Benfica a tirar a bola habilmente de zonas de pressão, revelando facilidade em rodar o centro das jogadas de um lado ao outro, pouco extraiu dessa acutilância em termos de finalização. A parra foi abundante, sobretudo nos pés de Kökçü, o íman de qualquer bola e exímio passador hoje com liberdade para espreitar onde mais convier à equipa. Já de meias em baixo, sintoma de corpo nas reservas de energia, o turco foi o único dos novos jogadores nucleares a terminar o jogo em campo.
A gasolina de Aursnes, retornado de lesão, secou cedo na segunda parte, tanto pela sua mexida natureza a fomentar triangulações pelo centro-direita, como pela exigência de dar as coberturas a Tomás Araújo que Di María se escusa a fazer. Não é inocente Bruno Lage ter pensado no norueguês para cuidar de tal asa do meio-campo. Antes de o treinador dosear os minutos do argentino ainda retirou primeiro Aktürcoglou e a eles seguiu-se Pavlidis, substituído por Arthur Cabral que fez mais do que Hamdouni e Prestianni, quando o Benfica já se retalhava no fio de jogo tanto quanto o Boavista se esquartejou ainda mais com o tempo.
Quando o avançado brasileiro fez o terceiro golo, nos descontos (90’+1), reclamando para ele a bola longa, bombeada quase de área a área, que o desnorte de Bruno Onyemaechi deixou bater na relva, os azadrezados já tinham acentuado a sua condição precária, até mais austera: em campo, além de Tomé e João, estavam Gonçalo Almeida, Tomás Silva, Marco Ribeiro e Augusto Dabó, nomes que pouco dirão a quem até muito atenta ao futebol pois quase nada eles disseram à bola neste nível, nestas andanças que pouco se importam a roerem quem estiver em campo, porque a bola tem de continuar a rolar.
Eram quatro suplentes entre os nove que havia no banco que não reuniam sequer meia hora de I Liga, caras sem rugas, pernas sem quilómetros, mas lá sentados, miúdos a aguardarem com paciência e simultaneamente a serem apressados nos galopes escada acima do futebol. Vestido com xadrez, o Boavista é hoje monocromático: sem dinheiro para saldar dívidas, sem poder inscrever futebolistas, empurra os que tem no Bessa para a vida adulta e obriga Cristiano Bacci, o treinador, a fazê-lo sem a virtude da paciência. Aos repelões, falhando passes e descordenando movimentos, mas sem temores em pressionar a quase todo o campo em vários momentos, só ameaçaram a baliza uma vez, num canto onde a cabeça de Augusto Dabó fez a bola ir às mãos de Trubin.
Indiferente a tudo isto, sem querer saber nem ter que querer, o Benfica acumulou outra vitória, a terceira em três jogos, na sua climatização às vontades de Bruno Lage. O ar já não é rarefeito, os hábitos vão aparecendo, mas este nunca seria a partida da qual seria possível retirar conclusões."
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