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terça-feira, 28 de julho de 2020

As papoilas germinavam-lhe nos pés...

"José Águas teve uma estreia infeliz com a camisola do Benfica, na Tapadinha, frente ao Atlético, no dia 24 de Setembro de 1950 - empate 2-2. Estava à beira de fazer 20 anos e ainda não se habituara às suas novas circunstâncias. Não seria preciso esperar muito: apenas mais uma semana...

Segunda jornada do campeonato nacional de 1950-51. Dia 24 de Setembro de 1950. O Benfica deslocou-se à Tapadinha para defrontar o Atlético. O onze inicial recita-se de cor para os adeptos mais fervorosos: Rosa; Jacinto e Fernandes; Moreira, Félix e Francisco Ferreira; Corona, Arsénio, Águas, Melão e Rosário.
Bem, eu digo que se recitava de cor, mas não é absolutamente exacto. Havia ali um elemento novo, do meio-campo para a frente. Águas: José Pinto de Carvalho dos Santos Águas, de seu nome completo. Estava à beira de completar 20 anos - no dia 9 de Novembro. Pela primeira vez era chamado ao team principal. Uma enorme curiosidade em seu redor. Faltava-se de um cabeceador temível, de um pássaro capaz de voar sobre os centrais adversários e tocar, de cima para baixo, do nada para o golo, as bolas que lhe fossem dirigidas à medida.
'É aquele! É aquele!', apontava um miúdo mais curioso.
A Tapadinha estava cheia, rebentando pelas costuras.
Os jornais da época registavam: 'Assistência avultada e franco ambiente de entusiasmo'.
O início foi rijo. Confronto directo, físico. Ben David dava água pela barba à defesa encarnada. Era um fulano tremendo de força e de vontade. Mas o Benfica tinha aquele trio de centrocampistas impressionante: Fernando Ferreira, Félix e Moreira. Autênticas torres num xadrez táctico que envolveu o adversário numa teia cada vez mais apertada e sufocante.
Águas era vítima de uma marcação homem-a-homem impiedosa por parte de Armindo. Lá de África, tinham chegado notícias sobre um rapaz que marcava golos em barda pela equipa de futebol da empresa Robert Hudson (representante da Ford), do Lobito. Depois jogou no Luso, e a sua fama cresceu até receber um convite do FC Porto, via telefone. José Àguas marimbou-se. 'Amanhã respondo', replicou. E o amanhã foi nunca.

Águas afligia-se
Nessa tarde da Tapadinha, Águas afligia-se. Não estava habituado a jogar em campos rehlvados, não lhe ajeitava aos pitons que lhe tornavam as botas mais rijas, menos maleáveis. Tinha chegado a Lisboa pouco antes, no dia 18 de Setembro, e já estava metido no futebol a sério, competitivo, bruto também.
O público não costuma perdoar quem quer que seja quando se sente defraudado nas suas expectativas. Olhavam para aquele rapaz magrinho, espigado, metido entre tantos dos heróis que tinham conquistado a Taça Latina três meses antes, e queriam golos e golos e golos. Afinal, não fora para isso que viera o tal de Águas? Mas nada de anda. Era o homem e as suas circunstâncias, com dizia Ortega y Gasset, e as circunstâncias erguiam-se cruelmente contra ao homem. O Atlético fez 1-0 por Ben David.
Uma revolta cresceu no peito do gigantesco Fernando Ferreira. Os seus gritos contagiavam companheiros e assustavam adversários. Mas logo no início do segundo tempo, 2-0, com autogolo de Félix.
Os benfiquistas, nas bancadas, arrancavam cabelos com o desespero. 'Mas por onde anda esse moço chamado Águas? Quando nos dará algo de diferente que explique o motivo de o temos ido buscar a África e de o treinador lhe dar a titularidade mal chegado que está a Lisboa?' Perguntas a que Águas ainda não estava preparado para responder.
Rosário foge pela lado direito, e não há quem o segure. Vai direito ao guarda-redes Ernesto, chuta com precisão e faz o 2-1. É tempo de arregaçar definitivamente as mangas, agora que a defesa do Atlético treme e vai perdendo a confiança que tinha exibido até então.
Há movimentos perigosos em ambas as grandes áreas. Percebe-se um equilíbrio notório, a qualquer momento surgirá um golo, mas para quem? A fadiga começa a fazer os seus estragos, o relógio não pára, o relógio não pára nunca! Cinco minutos para os três apitos derradeiros. Um último fôlego dos encarnados, indo buscar forças onde elas pareciam esgotadas. José Águas, o jovem José Águas, continua perdido no meio de um desafio de vontades e de garra ao qual não está habituado. Sente-se descoroçoado, mas não há motivos para isso. Os espectadores que, nessa tarde, saíram da Tapadinha frustrados com a sua exibição só terão de esperar mais uma semana. Na jornada a seguir, na goleada face ao SC Braga por 8-2, Águas marcará quatro golos, afastando em definitivo as nuvens negras que pairavam sobre ele como um mau presságio.
85 minutos. Rosário repete o seu golo a papel químico: 2-2.
Nada mais sobra no fundo da alma de 22 jogadores que esgotaram todos os seus recursos. O povo vai descendo devagarinho a tapada, em direcção a Alcântara, comentando as incidências da partida e a exibição sofrível de Águas, o africano. Águas regressa triste ao lar do Benfica. Mas é um homem de fibra. Na sua vontade férrea, os quatro golos que se seguirão em breve já germinam nos seus pés como papoilas num campo de gipsófila."

Afonso de Melo, in O Benfica

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