"O corpo é o “operador” de toda a prática social. Neste sentido, é legítimo analisar o lugar do corpo na sociologia do desporto. Nas suas condições habituais, o corpo é transparente. É o “excesso” que o faz surgir à consciência: dor, fatiga, doença, prazer, gestação, etc. Esta “transparência” não é “natural”. Ela é cultural. Marcel Mauss explicitou esta noção de cultura corporal a partir das “técnicas do corpo”, em 1934. Elas são muito mais do que utensílios. Elas fazem sentido para os indivíduos e para os grupos. É possível distinguir, grosso modo, quatro níveis de “socialidades corporais”:
1) As técnicas do corpo, enquanto gestos codificados, tendo em vista a eficácia prática ou simbólica;
2) Os gestos internacionais, que relevam de uma educação informal (o vestir, o não olhar fixamente uma pessoa, etc.);
3) As sociabilidades infra-corporais: a dor, por exemplo, faz parte da história de um indivíduo e, portanto, da sua singularidade. Na sociedade ocidental, existe uma tendência para que se sofra cada vez menos, salvo em certas situações, como é o caso do desporto. Impõe-se a noção de dor a um problema técnico a resolver com um medicamento.
4) A expressão dos sentimentos (teatro, cinema…), que corresponde a lógicas sociais e culturais variáveis.
No fundo, o corpo “fala”. Nas práticas desportivas competitivas, o corpo deverá “responder” e funcionar (concepção mecânica do corpo). As dores e as emoções surgem como perturbadoras. São a evacuar e a ignorar. O campo desportivo tornou-se o espaço por excelência da “construção” do corpo, da (re)produção dos estereótipos de beleza e da imagem corporal. O corpo é um objecto desejável de consumo. A crescente centralidade do corpo nas sociedades ocidentais tem vindo a incitar a procura de práticas desportivas com vista à manutenção da forma física. Os indivíduos exercitam-se por si mesmos, para se divertirem, para se suplantarem a si próprios, inclusive na “mortificação” física do “eu”. O princípio de “performance” democratiza-se, personaliza-se e psicologiza-se, regido pela gestão utilitarista do “capital-corpo” (que autores designam por “capital corporal” ou “capital físico”), pela optimização da forma e da saúde, pela emoção do extremo, etc. A angústia provocada pelo envelhecimento e pela morte leva a um zelar constante pelo bom funcionamento do “corpo-sujeito”, levando a uma lógica de mercantilização corporal. É preciso “pensar o corpo”, na medida em que ele é o principal meio de apresentação ao mundo. Se é certo de que enquanto seres humanos somos corpóreos – isto é, todos possuímos um corpo, não é menos verdade de que o corpo não é algo que nos limitemos a ter, nem algo puramente físico que existe separado da sociedade. Os nossos corpos são profundamente afectados pelas nossas experiências sociais, pelas normas e pelos valores dos grupos a que pertencemos. É um factor de distinção."
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