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quarta-feira, 22 de maio de 2019

Bernardo pode não encher a camisola, mas enche o campo

"Antes de falar do Jogador do Ano (em Manchester City), uns segundinhos para pensar neste contraste… por um lado o City, onde Bernardo Silva, David Silva e Gundogan constituíram o meio campo em tantos jogos, por outro o Liverpool que utilizou tantas vezes Fabinho, Henderson e Wynaldum. Esse meio campo do Man.City não os impediu (diria que foi o contrário, contribuiu) de serem a segunda melhor defesa do campeonato com 23 golos sofridos (mais um que a equipa de Klopp) e de chegar aos 169 golos nesta época, em todas as competições – recorde de sempre entre equipas da Premier League. Isto só prova que a visão de que impera no “futebol moderno” um “jogo físico” é uma visão muito redutora deste desporto. Claramente não há, nem nunca houve, uma só forma, nem um só tipo de jogadores, capaz de dominar o jogo, levando-o para o registo que mais nos caracteriza e favorece durante mais tempo nos 90 minutos. Será sempre uma questão de ter em campo inteligência/talento, ser coerente nas escolhas e naquilo que se treina para construir, muito além duma forma de jogar, uma cultura de jogo dentro da equipa… dentro do clube.
Virgil van Dijk foi considerado o melhor jogador da época, poderia muito bem ter sido o Bernardo, aquele menino que entre os 14 e os 17 anos, por ser franzino e abalroado pelos que tinham mais força, pouco jogava. Aquele menino que deu a volta a uma situação aparentemente desvantajosa recorrendo ao domínio do seu corpo e dos timings/espaços para o usar, evitando assim o contacto quando isso o colocava em problemas. Aquele menino que teve que se desenrascar recorrendo à única coisa que não engana, o jogo, arranjando soluções dentro do mesmo para a tal “desvantagem”, porque claramente não foi pelo aumento muscular que resolveu o problema e para surpresa de muitos fê-lo treinando no limite, num treino onde o essencial era jogo.
O Bernardo transcendeu o físico e exaltou o jogo, porque encheu o campo com aquilo que deveria ser essencial – o entender e saber jogar o jogo, pelos timings de ocupação dos melhores espaços (a defender e a atacar), pela forma como domina o seu corpo e o usa para tirar vantagem dos desequilíbrios momentâneos de jogadores com o dobro da sua massa muscular, com o dobro da sua força e da sua velocidade de deslocamento.
Este “encher o campo” não é o mesmo que “estar em todo o lado”, é antes um estar onde precisa de estar no momento certo para lá estar, quer quando joga por fora – extremo – como quando joga por dentro – médio.
Acho que o “futebol moderno” que criou o “reforço muscular” já teve mais que tempo de criar exercícios de “reforço de inteligência”, de “reforço de entendimento do jogo”, de “reforço do saber como tirar partido de situações onde o meu corpo (franzino) é aparentemente uma desvantagem”, mas parece que andamos distraídos com outras coisas que claramente não merecem nada o protagonismo todo que têm. O “reforço” essencial faz-se no treino jogando. Agora, se nos dizem que há jogadores que sentem necessidade de fazer outras coisas, porque valorizam e acreditam que é isso que os torna melhores, resta-nos dizer que sabemos dessa realidade.
«Se achamos que o mais importante é o que eu programo (toda a parte burocrática e científica), estamos enganados, é mais importante que o jogador (estando em condições) acredite que o que faz no treino é o melhor para ele e então aí chega ao jogo no seu máximo potencial para ganhar.»
Lorenzo Bonaventura (elemento da equipa técnica de Guardiola, no Barcelona, no Bayern e agora no Man.City)
Temos perfeita noção do poder das crenças e já o referimos aqui. Não é isso que nos preocupa, o que verdadeiramente nos preocupa é que no futebol os jogadores passem a atribuir maior importância ao físico do que ao jogo em si. Que se comece a ver jogadores dizer que foi o ginásio ou o treinar sozinho que me tornou um jogador que pode jogar na 1ª liga.
Por isso trazemos aqui o Bernardo (podíamos falar do David Silva, da mesma equipa, e de muitos outros), porque é um jogador que no seu todo (corpo/mente) tem o essencial do futebol e que contraria o “paradigma do atleta”. Isto é Futebol, não se trata de “atletismo com bola”, e portanto o corpo para jogar o futebol do Guardiola ou o futebol do Paulo Fonseca não pode ser o mesmo corpo de alguém cuja ideia de jogo é algo semelhante a “atletismo com bola”.
Já sabemos que isto choca muita gente, mas o essencial é a ideia de jogo e o jogador, o resto é gente a querer o protagonismo que não deve ter, para o bem do futebol e de criar uma cultura que permite o florescimento de jogadores que realmente percebem o que é importante. Para que quando eles sintam dificuldades em entrar no “ritmo competitivo do jogo” percebam que provavelmente terão que entender melhor os timings do mesmo e que correr mais, mais rápido ou durante mais tempo provavelmente não lhes irá resolver o problema. E por isso tem que haver harmonia/conexão entre todas as dimensões.
Para as pessoas que rotulam isto de contraproducente, aconselho a falarem com alguns pais que, para que os filhos melhorem (no futebol) os põem a fazer abdominais e flexões com 7 anos e que vão fazer treino intervalado para os parques com miúdos de 9.
Obrigado aos “Bernardos” que sabem que melhorar está essencialmente no jogo, sejam eles grandes, pequenos com muita ou pouca massa muscular. O Bernardo sem saber criou um contexto onde depende de nós usarmos o seu exemplo para mudarmos o Paradigma do treino e do jogador, respeitando a possibilidade de surgirem jogadores como ele. Porque o objectivo não é encher a camisola, mas sim encher o campo."

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