"Pode parecer estranho, mas não: não é estranho que cada vez mais me atormente como um ferrão a poética visão do jogo que o Cruyff tinha:
- O futebol joga-se com a cabeça, as pernas só lá estão para ajudar...
Atormenta-me porque se é indiscutivelmente assim (e bem) no futebol verdadeiro (o que se joga no campo) - no futebol que por cá (e cada vez mais) se joga fora do campo, não: a cabeça não está lá para ajudar, está lá para o esfarrapar e os pés só servem para a canelada com que patifes se enrolam em perfídias (ou pior).
Pior porque esse futebol que se joga fora de jogo (e sem bola) se vai tornando mais importante que o outro, o verdadeiro - como se fosse um espigão encravado na carne: impertinente e insuportável (com velhacarias, truques e hipocrisias, sem se perceber se a cara é a máscara - ou se a verdade da mentira está na cara ou está na máscara).
Pior porque esse futebol que se joga fora de jogo (e sem bola) se vai tornando mais importante que o outro, o verdadeiro - jogado pelos meandros de um alvoroçado manicómio: umas vezes em estúdios de televisão, outras pelas tugúrios das redes sociais em que se enrodilha (ou se disfarça para mostrar que contra certos argumentos não há factos, havendo, porém, a trapaça ou a fantasia que descoberta em si se diz dos outros).
Pior porque esse futebol que se joga fora de jogo (e sem bola) se vai tornando mais importante que o outro, o verdadeiro - como se fosse um pardieiro por onde se cruzam, em despudor, homens daqueles que sozinhos estão sempre em má companhia e nunca podem ser boas companhias (e pior: sendo o que são, quem os vai tendo em companhia não saiba ou não queira saber que são como são - e o que são). Podia dizer mais (e ainda pior) mas o que não posso deixar de dizer é que se não se desfizer de vez deste lodaçal (extripando uns e calando outros) o verdadeiro futebol acabará sufocado (e talvez morto...) na sua lama.
PS: Não, não vale a pena dizer-lhes os nomes, todos sabem quem eles são..."
António Simões, in A Bola
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