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sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Prosa para um cão cego

"Colva - O cão cego coça violentamente a sarna. Tem buracos na pele escassa. Uma raiva contra a escabiose ou contra ele próprio?
Uma música antiga soa-me na memória: um chamado teu? “O teu corpo é luz, sedução/Poema divino cheio de esplendor…”
O Universo retoma o seu rodar universal enquanto outros cães correm na areia aflitos de cio.
O cão da sarna fica entregue à pata traseira que fere a orelha até ao sangue.
Porcos negros e crianças escuras retouçam por detrás das barracas de tectos de colmo; os pescadores vão puxando os barcos para a praia atraindo a curiosidade da aldeia; há um cheiro intenso a maresia que vem com o peixe acabado de chegar.
Amanhã, lá para sul, em Palolem, pode ser que Ambrose nos leve na sua canoa estreita até Butterfly Beach onde há um pedaço apertado, deserto, de areia clara por entre cajueiros e rochedos.
Amanhã iremos sempre pelo mar adentro; os golfinhos escondendo-se nos requebros da espuma; uma barbatana fugidia, rápida: um vislumbre; um salto em direcção ao sol: pingos de água. Mas só amanhã...
O sol que escalda os braços e os ombros sem clemência.
O horizonte ao estender da mão.
Uma intuição de naus e caravelas.
O ruído engasgado do motor velho.
A ferocidade da nossa mudez. Gosto de viajar calado.
Um funeral passa na estrada: gente de negro à impiedade do calor grosso transportando um corpo frio a caminho da igreja de Saligão. Yodhi, a cigana de Karnataka ajoelha-se nas ondas como num templo. Os corvos gralham trocistas; riem-se do cão com sarna que não tem direito a cio.
Amanhã é tão longe e, no entanto, é já amanhã."

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