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quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Acabou-se, mas acabou o quê, exatamente?


"A meritocracia é um chavão de metal moldado nas fornalhas deste século e do anterior para dar chão à escalada das pessoas na vida profissional e manter-lhes a cenoura diante dos olhos. É útil e conveniente acreditarmos que os frutos das nossas capacidades vão valer, por si só, recompensas que nos melhorem a qualidade de vida. A meritocracia, porém, também desvia as atenções do esforço ou do stress - no caso dos mais rendidos à roda dentada do trabalho a todo o custo - que mastigam tanta gente, ou para a bajulação, a interesseirice e as pessoas-sim que muitas vezes servem para os realmente melhores de entre todos nós serem ultrapassados. É mais frequente do que raro vermos os de maior capacidade estagnarem na vida enquanto são fintados por gente que prefere as portas das traseiras para ir subindo.
Crer que só depende de nós irmos chegando mais além no mundo laboral é acreditar que um superior hierárquico, na dúvida entre o mais apto, capaz e provado, ou um seu menor em todos os fatores, mas que se ri efusivamente das piadas do chefe e lhe satisfaz, sem pensar, qualquer vontade no trabalho, vai olhar somente para as capacidades factuais e descurar os fingimentos forçados para massajar o ego de quem nos pode fazer subir na vida. Na sexta-feira, com o seu cabelo espetado no ar e olhar penetrante, Jorge Vilda aplaudiu o discurso do seu chefe e ao seu lado, também sentado, o careca Luis de la Fuente bateu uma palma contra a outra quando a pessoa a quem respondem na cadeia de comando disse que não se demitia.
Qual surpresa, então, quando a coluna vertebral dos treinadores das principais seleções da Real Federação de Futebol Espanhola, há horas recostada no assento da Assembleia Geral Extraordinária de onde o aplaudiram, canalizou neurotransmissores para as suas mãos dedilharem as declarações escritas com que criticaram o presidente da entidade que lhes paga o salário, mas só quando a FIFA o suspendeu “preventivamente” no seguimento do processo disciplinar que já lhe tinha instaurado. Abeirado da falésia, com apenas os mindinhos a sustê-lo do empurrão institucional, político e social para o abismo, aí os selecionadores optaram por ir contra quem nem um dia antes optaram por ovacionar, de pé.
No provável verão mais bem-sucedido da história do futebol espanhol, quando as mulheres conquistaram um inédito Mundial e os homens ganharam a Liga das Nações, dois treinadores que chegaram ao cargo em situações similares à lupa da opinião pública - com dúvidas em relação ao seu currículo e capacidade para exercerem os respetivos cargos - jogaram uma cartada semelhante. Viram Luis Rubiales agarrar os seus próprios testículos ao lado da Rainha de Espanha e uma das filhas, em Sydney, na tribuna do estádio onde, no relvado, depois agarrou, com ambas as mãos, na face de Jenni Hermoso, futebolista que beijou nos lábios sem consentimento, mas nada disseram quando o presidente da federação chamou “idiotas” aos seus detratores, “palermices” às críticas ao seu comportamento e “falsas feministas” às pessoas que apoiam a vítima que sugeriu como culpada.
Esses treinadores aconchegaram-se no silêncio, refastelados no aplauso que deixaram perante a gravação das câmaras, também quando Rubiales se recusou demitir devido ao que descreveu como um “pico”, ou um coloquial ‘bate-chapas’ traduzido para português. Quando a federação lançou um comunicado forense (entretanto apagado) a desmentir Jenni Hermoso e a defender-se com imagens da posição dos pés do dirigente para a acusar de mentir. E quando toda a equipa técnica da seleção feminina (11 pessoas) se despediu, em bloco, alegando ter sido obrigada a sentar-se na primeira fila do auditório, para freguês ver, durante o discurso em que Rubiales começou por justificar o seu agarrar de genitália à emoção sentida para com Jorge Vilda, o treinador que agora está, literalmente, sozinho.
“Emocionei-me muito, a tal ponto de perder o controlo e levar a mão ali, quando a tua primeira reação após ganhar o Mundial foi virares-te para a tribuna e apontares para mim”, enterneceu-se o então ainda não-suspenso dirigente para com o seu subordinado a quem providenciou respaldo, com unhas e dentes, quando o treinador enfrentou o protesto de 15 futebolistas há um ano, decididas a renunciarem à seleção enquanto não vissem mudanças para melhor na federação: cresceram, no fim de semana, para mais de 80 futebolistas espanholas se recusam em aceder a qualquer convocatória enquanto não houver “mudanças reais, tanto desportivas como estruturais”. Por esta altura, já clubes espanhóis, futebolistas masculinos, capitãs das melhores seleções femininas e atletas espanhóis medalhados noutras modalidades criticavam Luis Rubiales.
Só depois de tudo isto se leu de Jorge Vilda uma crítica ao “comportamento impróprio” do presidente da federação, “sem dúvida inaceitável” e que “não reflete em absoluto os princípios e valores” defendidos pelo treinador “no desporto e na vida em geral”. Quem antes aplaudiu, de pé, a meia-hora de discurso em que Rubiales se defendeu, atacando, condenou depois “sem paliativos qualquer atitude machista, afastada de uma sociedade avançada e desenvolvida”. No mesmo dia, sábado, Luis de la Fuente, o primeiro dos dois a levantar-se para o ovacionar, censurou também “sem paliativos” o “comportamento errado e fora do lugar” do presidente, dizendo que as suas ações “não respeitaram o mínimo protocolo que se deve seguir nos atos de celebração e não são edificantes, nem apropriados para uma pessoa que estava a representar o futebol espanhol”.
O aplauso e a crítica não se distinguem pela corda-bamba, não é por uma nesga, há um oceano de diferença entre eles. Um dia bastou para o par de homens que selecionam e treinam os e as melhores desse futebol se aperceberem que já iam tarde para atenuarem um próprio ato que escolheram ter na cara do seu chefe.
Luis Rubiales é dono de funções como vice-presidente da UEFA, reeleito há meses para o comité executivo da entidade ainda recolhida ao silêncio, que nada disse sobre o caso, mas é publicamente apoiante da candidatura conjunta de Espanha, Portugal e Marrocos para acolherem o Mundial de 2030. A Federação Portuguesa de Futebol tão pouco se pronunciou oficialmente, nos seus canais e pelos seus dirigentes, quanto a tudo o que se tem passado do lado de lá da fronteira (à hora a que vos escrevo, nenhuma respondeu aos pedidos de reação enviados pela Tribuna Expresso). Em Espanha, as futebolistas que más línguas da pré-História acusam de estarem a fazer barulho por nada, começaram um movimento sob a égide de um “#SeAcabó” já muito partilhado que, para desgraça do seu feito, fez a ressaca da conquista do Mundial focar-se quase inteiramente nesta polémica.
Mas acabou exatamente o quê? Criticarmos só quando as condições para se criticar ficaram mais fáceis? Precavermos os nossos interesses antes de nos atravessamos publicamente por valores que vendemos como maiores do que tudo? Elas, as futebolistas espanholas, estão dispostas a renderem-se ao desvio do holofote para criticarem até às últimas consequências Luis Rubiales, a estrutura federativa da qual ele é o cume e um modus operandi geracional que está a ofuscar a tremenda conquista que conseguiram nos relvados, enquanto as caras das seleções nacionais de um país se pareceram preocupar primeiro com quem assinou os seus contratos de trabalho."

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