"É claro que ouvir Gianni Infantino anunciar que o Mundial de 2023 gerou 525 milhões de euros são excelentes notícias, mesmo vindas do homem que pouco depois sublinhou que as mulheres devem escolher “as batalhas certas” - diga-nos, por favor, senhor presidente, quais são então as lutas que valem a pena, nós mulheres não sabemos.
Todos esses milhões querem dizer que a FIFA já não perde dinheiro a organizar o Mundial feminino, o que deve satisfazer o departamento financeiro lá nos escritórios na Suíça mais do que qualquer outra coisa, mas centremo-nos nas coisas boas.
Os tais 525 milhões de euros significam que o interesse no futebol feminino não pára de crescer e são sintoma de algo ainda mais importante: o Mundial de 2023 foi o Mundial da verdadeira globalização do futebol feminino, um Mundial de surpresas, com estreantes competitivos a baterem o pé às antigas potências, em que Portugal, um dos debutantes, também fez o seu pequeno-grande estrondo, ficando a meros 12 centímetros de eliminar a equipa bicampeã mundial, os Estados Unidos. Passar o Mundial de 24 para 32 equipas não lhe retirou competitividade - e nisso há que tirar o chapéu à FIFA -, apenas aumentou a montra: hoje, já muitas raparigas podem sonhar em serem futebolistas, tenham estudado numa universidade norte-americana, nascido numa cidade da Suécia ou num bairro pobre do Haiti. E isso vale mais do que qualquer milhão.
E, também por isso, este é ainda o Mundial da mudança de poderes. Antigas potências como Alemanha, Brasil ou Canadá ficaram-se pela fase de grupos. Os Estados Unidos, que caíram nos oitavos de final, tiveram a sua pior participação de sempre. Talvez estas seleções não estejam piores. Mas quando o investimento chega ao futebol feminino, seja onde for, a evolução é frenética e isso é lindíssimo de se ver.
Não é por isso de estranhar que a final de domingo tenha sido jogada por Espanha e Inglaterra, que há 10 ou 15 anos estavam longe de ser favoritas ao que quer que fosse, apesar da rica história de futebol que tinham as costas. A Inglaterra apostou numa reformulada liga em 2011, que em 2018 se tornou profissional. Quase todos os grandes clubes ingleses têm equipa feminina e a liga local é provavelmente a mais forte do planeta. Com a aposta da federação e dos clubes chegaram os patrocinadores, o dinheiro das transmissões televisivas. Nada é por acaso.
No caso de Espanha, que sai da Austrália/Nova Zelândia como nova campeã mundial, a evolução foi ainda mais célere. As seleções jovens iam conseguindo resultados muito interessantes dos Mundiais e Europeus de sub-17, sub-19 e sub-20, com finais e vitórias, mas a seleção principal só se estreou em Mundiais em 2015. O selecionador era Ignacio Quereda, que esteve à frente da equipa inacreditáveis 27 anos, o que diz muito da (nula) ambição. Só a ação das jogadoras depois desse Mundial, exigindo mudanças no corpo técnico e na preparação das equipas, tirou Espanha do marasmo: o país que nos anos anteriores havia ganhado dois Europeus e um Mundial a nível masculino, dava 1% do seu orçamento para o futebol feminino.
Espanha seguiu o exemplo inglês em 2021, profissionalizando uma liga que já tinha no Barcelona uma força em crescimento exponencial a nível europeu. Muitos clubes ajudaram, mas na Catalunha o talento espanhol floresceu, as raparigas que tanto brilhavam nos Europeus e Mundiais jovens começaram a ter oportunidade de o demonstrar no plano sénior. E a seleção nacional, que em 2015 não ganhou qualquer jogo e em 2019 se quedou pelo primeiro jogo a eliminar, venceu à terceira tentativa.
Nem tudo é linear e o conflito entre jogadoras e Jorge Vilda, treinador que sucedeu a Quereda, diz-nos que para as mulheres será sempre mais difícil. O selecionador que até há bem pouco tempo exigia que as jogadoras dormissem de porta aberta e a quem muitas delas não reconhecem qualidade técnica também sai vencedor, o que é agridoce. Cada vitória das futebolistas sai-lhes muito cara. É possível que Mapi León e Patri Guijarro não sejam hoje campeãs mundiais porque as mudanças operadas pela federação espanhola depois de, há um ano, quinze jogadoras se terem recusado a ser convocadas por não concordarem com a abordagem da equipa técnica, foram, para si, insuficientes.
É para tudo isto que se deve olhar deste lado da fronteira. O bom e o mau. É preciso dar a oportunidade às futebolistas de falarem. Elas sabem quais são as batalhas certas, não precisam que ninguém lhes diga. Também foi da revolta delas, em 2015 ou em 2022, que nasceu este título mundial espanhol em seniores. É preciso mais investimento, lembrar que boa parte dos clubes têm feito a sua parte e que muitos outros não conseguem, para já, dar mais. É preciso estar mais vezes nos Mundiais e Europeus de jovens, onde Espanha é hoje crónica candidata: Portugal tem apenas três participações nestes torneios, 2014 e 2019 no Euro sub-17 e 2012 no Euro sub-19. Quando Jéssica Silva pediu e falou em continuarmos a dar-lhes a mão, no regresso da Nova Zelândia, é também por isto: tal como Espanha em 2015, temos aqui a oportunidade de investir e investir e volta a investir, clubes, Estado, FPF e privados, para estarmos permanentemente nestes palcos e utilizarmos todo o nosso potencial, que é imenso. O estado atual do futebol feminino, como vimos neste Mundial, não se compadece com marchas-atrás, com olhares para baixo. O único caminho é para cima. Espanha, entre tantos conflitos, demorou três Mundiais para chegar ao topo. Imaginem até onde podemos nós chegar."
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