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terça-feira, 18 de outubro de 2022

Burnout: quando a paixão também “mata”


"Diz aos meus filhos que amanhã volto para casa
Eu ligo em vídeo para disfarçar a saudade
Mas cada dia só aumenta a vossa falta
Um dia largo tudo e largamos esta cidade
São só mais umas horas e amanhã outras tantas
Pensa que isto é uma sorte e que não podes desistir
Querem enfiar-me comprimidos na garganta
Que não me deixam chorar e também não me deixam rir
Já não sei o que dizer ao meu cansaço
Dou-lhe um beijo e peço que volte mais tarde
Se saber sobreviver é uma arte Ser artista não é ter escolha é ter carne
Tenho em mim dores que estão adormecidas
Outras que gritam e reclamam um lugar
Se o coração tivesse à vista as minhas feridas
Senão me matarem vão-me fazer abrandar (…)

“Cansaço”, Carolina Deslandes
Confundimos frequentemente cansaço com preguiça – socialmente, numa época em que todos “temos” que ser saudáveis, ativos e felizes… dizer estou “cansado(a)”, não “cai bem”… nem merece assim tantos “likes”…
O cansaço (físico e/ou emocional) pode ser, no entanto, um predecessor do síndrome de burnout e deve, por isso mesmo, merecer a nossa atenção.
Numa semana em que, pelo menos três top performers do meio artístico/entretenimento, tornaram pública a sua decisão e necessidade de se afastarem do seu quotidiano profissional, por razões aparentemente relacionadas com “burnout”, cruzei-me acidentalmente com esta letra da Carolina Deslandes.
Muito frequentemente o fenómeno de burnout é associado ao quotidiano laboral/empresarial, numa lógica “top-down”, ou seja, pela pressão e condições (ou falta delas) impostas de cima para baixo, resultando num contexto difícil dos demais colaboradores gerirem – principalmente pela baixa literacia emocional que atravessa (verticalmente) as nossas empresas e o nosso país.
Contudo, fala-se muito pouco das condições (e pressões) onde operam os “top performers” de variadíssimas áreas de desempenho (artístico, desportivo e empresarial) – razões mais do que suficientes para a instalação de quadros de cansaço crónico e, mais tarde, burnout.

O Estigma Do “Privilégio”
Um dos mais bem guardados “tabus” nesta área, e como tão bem refere a compositora na sua letra ("Pensa que isto é uma sorte e não podes desistir"), relaciona-se com o facto de que, muitas vezes, as pessoas que desenvolvem uma atividade pela qual se sentem verdadeiramente apaixonadas e comprometidas (e onde, ainda por cima, se “atrevem” a ser bem sucedidas) evidenciarem “vergonha” em relatar o estado de sofrimento em que se possam encontrar, empurrando-se sucessivamente para mais um e outro dia de trabalho.
De facto, no imaginário da maioria de nós, o facto de dedicar-se a algo de forma apaixonada parece comportar uma qualquer forma de “proteção” face ao desgaste, exaustão ou colapso físico e emocional… ou então, tendo essa “sorte”, perde-se a oportunidade de dar voz ao sofrimento, sob pena (pesada) de poder ser entendido como uma “falta de respeito” para quem não tem (ou criou) a oportunidade de trabalhar em algo de que goste verdadeiramente.
Este fenómeno encontra-se (felizmente) já fortemente documentado na área da investigação no desporto de alto rendimento, onde os atletas referem frequentemente não sentirem “ter o direito de se queixar porque tem uma vida que muitos queriam ter”…
Mas será que queriam mesmo?
Quando falamos em “top performance”, independentemente do contexto (artístico, desportivo ou empresarial), a esmagadora maioria de pessoas que por lá “sobrevive” (sim, demasiadas vezes é mesmo um tema de “sobrevivência”), afirmando-se de dia para dia, não o faz sem aumentar, a médio/longo prazo, a probabilidade de vir a sofrer de perturbações em termos da sua saúde emocional (logo, física também pois há uma estreita conexão entre ambas) na medida em que, pertencer a este grupo de “eleito(as)”, exige um avolumadíssimo numero de horas de entrega que, muito frequentemente, conflituam com a vida pessoal/familiar.
Não nos podemos esquecer também, que muito frequentemente, estes “top performer’s” evidenciam elevados níveis de perfeccionismo que resultam frequentemente numa incapacidade em sentir que podem estar a “falhar” consigo próprios ou com quem os rodeia – esta combinação “explosiva”, traduz-se muito frequentemente num discurso no quotidiano sobejamente carregado de pequenas “artimanhas” que mantém a atenção (de forma muito eficiente) no que falta fazer (é só mais isto…”), desviando a mesma do nível de cansaço e exaustão acumulados.
Este “privilégio” de ser uma referência numa dada área (um treinador, um atleta, artista, músico, empresário ou CEO de uma organização de renome) traz quase sempre uma enorme quantidade de sacrifícios pessoais e familiares que raramente veem a luz do dia e, por muitas vezes não terem sequer uma relação direta com o desempenho (que se mantem muito frequentemente muito elevado), apenas se tornam visíveis quando o colapso acontece (burnout).

Isolamento, Solidão E Burnout
Um grande amigo meu costuma referir que “um homem depois de morto, ainda rasteja cinquenta metros” e, invariavelmente, gera-se uma enorme gargalhada à sua volta.
A verdade é que se a expressão fosse “um homem para não se matar, deve cuidar de si próprio, saber parar e regenerar” o impacto e validação social não seria o mesmo.
Nascidos numa sociedade que privilegia resultados, visibilidade, status e, atualmente, picos de adrenalina que se confundem com felicidade, ao invés de foco no processo e no desenvolvimento de competências intrapessoais (ex: inteligência emocional) que nos permitem “surfar” todo o tipo de “ondas emocionais”, aproximando-nos do projeto de vida que de facto queremos e não que nos foi “vendido”, sem “lastro emocional”, muito frequentemente acabamos por nos deixar isolar aqui e ali – até porque a “queixa” parece mal ou não queremos ser “o(a) amigo(a) chato(a)” que está a penalizar o bom ambiente do grupo…
Pequenos desconfortos que se vão sentindo, mas que se tardam a partilhar por não se querer “incomodar” ou considerar que da paixão, colocada em projetos e pessoas, pudesse mais tarde resultar num qualquer tipo de “recompensa”.
O burnout, neste tipo de população, é muito frequentemente o outro lado de uma moeda que se chama “resiliência” – uma resiliência que se levou para lá do desejável onde, quando se “atira a toalha ao chão”, já há muito que o corpo começou a dar indicadores de que algo não está bem (insónias, arritmias, cansaço extremo e incapacidade de regenerar, irritabilidade labilidade emocional) e se devia ter deixado de cuidar (tanto) dos outros e passar a cuidar de si próprio(a).
E, na realidade, agiganta-se entre nós – de todas as vezes que “fingimos” estar bem ou que nos contentamos com os sorrisos que vemos e não nos detemos aqueles 10 segundos que nos permitem perguntar: “Estás bem?”"

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