"Um sentimento antirusso, acusam. Farei parte de algo assim? Talvez não tanto mais há algo em mim que suspeita, que teme o desconhecido que vem da Rússia e que deriva, estou convencido, do impacto das duas superpotências, a russa e a americana, na nossa cultura, na minha educação. As vezes em que estive na Rússia ou nos EUA foram sensivelmente as mesmas, nada de errado me aconteceu, contudo nunca me senti tão longe de casa como na Rússia e nunca soube explicar porquê.
Também leio os russos desde a adolescência e sou até um pasmado admirador da grandiosidade e da beleza decadente dos estilos escultóricos e arquitectónicos da era soviética. Em todo o caso, aquela cultura nunca me chegou da mesma forma, sempre me foi apresentada com ressalvas históricas, líderes loucos, expansionismos perigosos, economias falhadas, Berlim, um reactor nuclear explodido, tudo o que há de dramático, ou não fosse uma potência.
Coisas parecidas também há do outro lado da fronteira ideológica - ou não?
Ao surgirem estas punições da Antidopagem, visando o governo russo de liderança do maior plano de doping jamais conhecido, parece, para lá das provas que convencem a WADA, formar-se também qualquer coisa na qual se quer acreditar, como se para perceber e justificar o resto.
Mas, insisto, do outro lado houve Armstrong, a maior mentira do desporto; há agora um presidente que ridiculariza a verdade e desvaloriza a ciência, ao qual, para cúmulo, insistem em perguntar se ele não será espião russo! Um sentimento antiamericano, dizem.
Nestes tempos de crise cultural americana, de um inédito distanciamento, chegam-nos
confundidos os tais velhos preconceitos de bem e mal e ficamos - eu fico - sem saber o que é realmente isso da cultura na qual crescemos.
Nunca há monstros piores que aqueles que nós criamos, isso eu sei."
Miguel Cardoso Pereira, in A Bola
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