"Em França convencemos pouco. Tanto se bateu naquele futebol de tracção atrás que Fernando Santos engendrou um golpe de retórica para acalmar os queixosos
Passaram apenas dois anos, mas repare-se no que mudou entre a inimaginável, pelo menos para mim, conquista do Campeonato da Europa de 2016, em França, em que gerações de portugueses emigrantes, não só os franceses, igualmente os milhões espalhados por todos os continentes, sentiram orgulho na sua nacionalidade e talvez como em nenhuma outra ocasião proclamaram nas suas comunidades eu também sou português, e a vitória na primeira edição da Liga das Nações da UEFA, anteontem, no Estádio do Dragão, motivo bastante para levar a Selecção à varanda do bonito edifício da Câmara do Porto como forma de agradecimento à multidão imensa, a qual, impulsionada pela força arrebatadora e única que o futebol possui, em gesto espontâneo e genuíno, encheu os Aliados para comemorar a proeza na companhia dos seus heróis.
Da Selecção fala-se muito e nem sempre com o devido propósito. A crítica sobrepõe-se ao elogio, pela quantidade e pela intensidade, e, quer vença, quer perca, a figura do seleccionador jamais deixa de estar na rota do furacão, porque mesmo fazendo bem... seria sua obrigação ter feito melhor. Não há volta a dar, e é por isso que quem ocupa o cargo, mais do que um estratega hábil e experiente, deve ser, em primeiro lugar, um agregador de sensibilidades, um terapeuta de conflitos, um mensageiro de valores. Tudo aquilo em que Fernando Santos é bom, muito bom, e decido a essas qualidades pessoais o processo de renovação da equipa nacional desenvolve-se a um ritmo naturalmente sujeito a opiniões divergentes, mas com serenidade e visão de futuro. As decisões avulsas tomadas ao livre arbítrio de quem exercia o poder, sempre numa perspectiva imediatista, obedecem agora a uma política evolutiva, e abrangente, de modo a aproveitar a riqueza do presente sem perder de vista as pedras preciosas, cada vez em maior número, que vão sendo lapidadas por mestres competentes nas gerações vindouras.
Mais do que o sucesso do futebol português, deve realçar-se a qualidade do futebolista luso, como testemunho os dois importantes títulos internacionais no curto período de três anos, os quais dão de Portugal uma imagem além-fronteiras respeitada a admirada, que nada, mesmo nada, se parece com a sua pobre realidade interna, fomentada por conceitos de dirigismo fora de prazo e ampliada em tempos de antena por fanáticos de clubite tribalista.
Em França, ficámos com a taça, mas convencemos pouco. Tanto se bateu naquele futebol de tracção atrás que Fernando Santos engendrou um golpe de retórica para acalmar a vaga queixosa. Ao arquitectar um biombo para separar a jogar bonito do jogar bem, convidou a menos barulho e a ma análise mais esclarecida sobre o tema. Três anos depois, creio que ele próprio fez a sua introspecção e terá chegado a uma conclusão tão simples como esta: se fatia considerável dos reparos não assentava em suporte suficientemente válido, a ele ficar-lhe-ia bem prescindir de alguma da razão que reclamava e se calhar não devia.
Na noite do último domingo, no Dragão, este Portugal renovado também triunfou, mas foi mais convincente, mais agressivo, mais corajoso. Enfim, jogou muito melhor, sem, no entanto, perverter princípios que proíbem as equipas de Santos de serem doidas a atacar e as obrigam a tarefas defensivas prioritárias, porque, como afirmou na projecção desta final com a Holanda, «somos obrigados a ter uma filosofia de ataque, mas sempre com equilíbrio de não sofrermos».
Confesso que entendo mal algumas das opções de Fernando Santos, mas quem nos deu aquilo que nunca pensámos ter merece toda a nossa gratidão. Posso discordar. Irei continuar a contestá-lo, mas ingrato não quero ser. Se foi campeão europeu, venceu a Liga das Nações e vai para três anos só com duas derrotas em jogos oficiais (Suíça, 2016, e Uruguai, 2018), muito provavelmente eu é que estou no lado errado.
Nota Final - Rúben Neves fez praticamente toda a fase de qualificação da Liga das Nações, foi titular com a Ucrânia e rubricou desempenho elogioso diante da Suíça. Deve ter-lhe custado ser excluído da final mas a vida é assim. Mais finais virão.
Bruno Fernandes, em sentido inverso, há muito merecia um espaço na Selecção que não vislumbrava. Passou ao lado da qualificação na Liga das Nações, mas teve lugar marcado na final, e bem. É tão importante respeitar-se quem está como dar-se uma oportunidade a quem quer entrar. E há mais gente a querer entrar."
Fernando Guerra, in A Bola
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