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terça-feira, 29 de maio de 2018

Uma alma encarnada atrás de grades azuis e brancas

"Hernâni foi o maior jogador que a Águeda da minha infância produziu. Veio prestar provas ao Benfica e disseram: «Como esse temos cá muitos!» Não teriam. Foi para o FC Porto. E tornou-se um dos grandes do futebol português.

No tempo do meu bisavô Afonso, ao qual chamavam o Grande Afonso, apesar de ele até ser para o baixinho, dizia-se: Águeda é o Mundo! E até certo ponto era verdade.
Conheço muita gente para quem Águeda continua a ser o Mundo. Com ponto de exclamação, ou não, no final da frase, pouco importa. Diria mais... ou melhor, vou pôr o Alberto Caeiro a dizer por mim: 'O Mundo não se fez para pensarmos nele, mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.'
Vinha para falar de Hernâni, o melhor jogador da história de Águeda, e perdi-me um pouco. Bem sei, bem sei, Hernâni jogou no FC Porto. Foi, aliás, um dos grandes jogadores da história do FC Porto. Mas lá por dentro era do Benfica. Acreditem que eu sei: sou de Águeda como ele.
O meu amigo Bernardo Trindade, o melhor alfarrabista de Lisboa, faz-me chegar às mãos, de vez em quando, verdadeiras preciosidades. A última foi a Crónica Desportiva n.º 27 - 13 de Outubro de 1957. Título: 'A História de Hernâni, o Portento de Águeda'.
Toda a gente que o viu jogar em miúdo, lá no adro e na Venda Nova, como o meu pai, o Manuel Alegre ou o Paulo Sucena, é taxativa: fazia coisas do arco-da-velha com uma bola de trapos.

Vermelho no coração
Hernâni cresceu, foi para a Escola Comercial e formou um clube: o FC do Adro, ali junto à Igreja de Santa Eulália, padroeira da terra. Depois jogou no Clube do Bairro da Venda Nova. Finalmente, pelos seus 15 anos, juntou uns amigos e tratou de lançar um clube mais a sério: o FC de Águeda.
Ora o FC de Àgueda tinha um equipamento à FC Porto. E, na tal Crónica Desportiva n.º 27 que agora folheio, Hernâni, que era Ferreira da Silva, como Eusébio mas de apelidos trocados, confessava: 'Não gostei muito da ideia do equipamento, já que era todo benfiquista, tal como o meu pai. Porque haveríamos de jogar com camisolas à Porto?'
Não foi por muito tempo. Ingressaria nos juniores do Recreio de Águeda, que costumava ter camisolas vermelhas, daqueles vermelhas escuro sangue seco, ou vinho tinto velho, e depois fez a carreira que todos conhecemos, no FC Porto sobretudo, rapazinho de alma vermelha fechado em grades azuis e brancas.
'Filho único / A mãe lhe dera / Um nome e o mantivera / Menino de sua mãe', diria Fernando Pessoa.
Hernâni, filho único de Aurora Augusto da Silva e Manuel Ferreira Balreira.
Veio ao Benfica prestar provas pela mão de Francisco Duarte, pai de Manuel Alegre, que foi por mais de uma vez treinador do Recreio. Ouviu uma sentença amarga: 'Como esse temos cá muitos!' E Francisco Duarte diria, pela vida fora: 'Enganaram-se!'
O FC Porto não se enganou.
Hernâni foi um dos melhores jogadores da história do futebol português.
Águeda é a terra da minha infância e eu, como Saint-Exupéry, sou da minha infância como de um país.
Não há muita gente que saiba que o Vidal, de Aguada de Cima, levou leitões à rainha de Inglaterra. Já estive em lugares da Terra onde as pessoas não fazem ideia de onde ficam as Aguadas de Cima e de Baixo, quanto mais Oronhe ou Bolfiar, o Raivo ou Valdomingos. Já estive em lugares da Terra onde as pessoas não sabem ao certo o que é um leitão e não têm conhecimentos muito mais profundos sobre a própria rainha de Inglaterra.
Antigamente, em Águeda, o campo de futebol chamava-se Campo de S. Sebastião. Tinha a capela atrás de uma baliza e o campo de básquete atrás da outra. À volta tinha tapumes de madeira, e o Recreio disputou nele os jogos mais históricos da sua história expecto um.
Nestas coisas de jogos históricos, a memória tem uma importância fundamental: quanto menos a gente se lembra deles, mais históricos são. Não há jogos históricos sem imaginação e um ou outro pormenor impossível de confirmar que possam motivar discussões vitalícias. Não é segredo para ninguém: a memória é a maior inimiga da imaginação. Nenhum golo é tão bonito como aquele do qual não há gente se lembre, mas do qual toda a gente finge lembrar-se no momento em que alguém se decide descrevê-lo. A bola caindo na entrada da área, o Fanfas chutando de primeira, as redes da baliza do lado da capela abanando de alegria... São poucos os que se atrevem a discutir um golo inventado. E quando o discutem tornam-no verdadeiro: isto é, mais histórico.
Na excepção dos jogos históricos do Campo de S. Sebastião, há o Recreio-Benfica já na beira-rio, em 1983, junto às Lavandeiras e ao Fojo. Nessa tarde foi tanta gente ao Municipal, que o público se esticou até às linhas laterais e eram guardas republicanos a cavalo que vigiavam os fiscais de linha. Hoje lembrei-me de Hernâni, que queria jogar no Benfica. Não jogou.

Mas continuou a ter uma alma encarnada, apesar de prisioneira entre grades azuis e brancas."


Afonso de Melo, in O Benfica

1 comentário:

  1. Soberbos, estes textos de Afonso de Melo, que me habituei a não perder no nosso «O Benfica».

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