"Sinto que uma baleia é atacada na Islândia de cada vez que um jogador de futebol diz que é preciso levantar a cabeça e continuar a trabalhar.
O que é trágico. Está a dar cabo do ecossistema. Destrói a nossa fauna, e provavelmente a nossa flora. É no fundo um ataque a todos os mamíferos, até aqueles que dizem que é preciso levantar a cabeça e continuar a trabalhar.
Isto, meus caros, é grave. E sobre isto ninguém fala.
Não se escrevem editoriais nos jornais nem se fazem debates na televisão. Nem Miguel Sousa Tavares, aquele senhor que apela à serenidade quando o povo está revoltado e incita à revolta quando o povo está sereno, nem Miguel Sousa Tavares, repito, diz nada sobre o assunto.
Enquanto isso os jogadores continuam a repetir que é preciso levantar a cabeça e continuar a trabalhar. Sem dó nem piedade, sem qualquer compaixão, sem um pingo de comiseração, eles insistem, e insistem, e insistem, e insistem mais uma vez.
Pensam que são o Rui Costa, que conduzia a bola sem precisar de colocar os olhos no chão, invadem o nosso espaço mediático e trocam-nos as voltas.
Por que é que não se pode baixar a cabeça e trabalhar? Não era isso que fazia, por exemplo, o Folha nos anos noventa? Ou será que estão apenas a troçar? É um ataque a Capel? Não teve graça. Nem Gian Piero Gasperini foi tão cruel com o espanhol.
Se tivessem de correr com uma mochila às costas provavelmente também tinham de baixar a cabeça para trabalhar: e aí já não falavam assim.
Por que é que de cada vez que alguma coisa corre mal, o jogador nos diz que é preciso levantar a cabeça e trabalhar? Não podemos levantar a cabeça e não fazer nenhum?
Melhor ainda: não podemos baixar a cabeça e não fazer nenhum? Não podemos simplesmente ficar ao sol a esturricar depois de termos baixado a cabeça, encolhido os ombros, esticados os braços e mergulhado na piscina?
Isso sim, era uma sugestão inteligente.
Ah, e tal, o jogo correu mal, mas amanhã estamos de folga por isso vamos baixar a cabeça e preguiçar por aí. Na segunda-feira logo se vê o que fazemos a seguir.
Ora os clubes, que se enchem de assessores, directores e consultores de comunicação, podiam calar os jogadores um bocadinho menos e instruí-los a falar melhor.
Afinal de contas os jogadores de hoje não são só jogadores: são ídolos, modelos, referências de muitos miúdos.
Miúdos esses que estão geralmente sedentos de seguir o exemplo dos ídolos que vêem na televisão. A encher o relvado de magia, a fazer-nos sonhar com jogadas sedutoras e a dizer no fim que... é preciso levantar a cabeça e continuar a trabalhar.
Dramático, não é?
Enfim, era isto que queria dizer: e acreditem que me sinto muito melhor por o ter dito.
Agora, se não se importam, vou baixar a cabeça e continuar a trabalhar."
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