Últimas indefectivações

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Fernando Santos: ou esteve muito tempo fora ou então não sei

"Quando me perguntam qual é o golo da minha vida, eu viajo três décadas no tempo para voltar à minha infância: ao golo de Carlos Manuel em Estugarda.
Por um lado porque durante anos todos os programas de desporto da RTP repetiam aquele momento no genérico de abertura, o que significa que terei visto o golo centenas de vezes: mais até do que o calcanhar de Madjer em Viena.
Por outro lado porque aquele golo de Carlos Manuel encerra a definição mais perfeita de Portugal: um país que é uma permanente epopeia.
Vale a pena lembrar os leitores mais novos que em 1985 Portugal deixou o apuramento para o Mundial do México adiado para o último jogo: e por força das circunstâncias, ou do destino fatalmente português, o último jogo era na Alemanha.
Ora vencer na Alemanha era uma tarefa praticamente impossível, e o que é que Portugal fez? Venceu na Alemanha.
Venceu, aliás, da forma mais notável: num remate celestial de Carlos Manuel, de fora da área, ao ângulo, com Schumacher preso ao chão.
Isto, meus caros, isto é Portugal.
Um país que não se mede pela medida do possível, mede-se pela medida do impossível. Um país cheio de metas difíceis e objectivos irrealistas, de propósitos utópicos e projectos impossíveis. Um país enfim coberto de portugueses a falar português.
Portugal é confortavelmente insatisfeito.
Por norma senta-se à sombra, pensa que tem tempo e só se levanta quando o coração pular a noventa batidas por minuto. Espera que o tempo, ou o lugar, ou ambos estejam contra ele, entra num estado de completo desassossego e depois sim atira mãos à obra.
Portugal não é prudente, nem organizado, nem sequer é aborrecido. É um poema épico à espera de ser escrito.
Quer dizer, há uma excepção: o crime. Os criminosos portugueses são uma vergonha para a classe, como escreveu um dia Miguel Esteves Cardoso.
Geralmente o nosso criminoso começa por ir para a tasca beber uns copos, acaba por se embebedar, grita que vai matar a mulher, ou o cunhado, ou ambos, ouve os vizinhos dizer ó homem não faça isso, grita que faz sim senhor, ai não que não faz, chega a casa, dá um tiro na mulher, no cunhado ou em ambos, e deita-se no chão à espera que a GNR chegue.
Não planeia, não esconde provas, não prepara alibis, nem dá luta nenhuma à polícia.
Os criminosos estrangeiros geralmente voltam ao local do crime. Os nossos nunca o abandonam. São enfim de um amadorismo confrangedor.
Para lá disso, da despretensão e singeleza dos nossos criminosos, Portugal, sim, é um poema épico à espera de ser escrito. Uma constante aventura.
Ninguém me tira da cabeça, por exemplo, que Vasco da Gama só descobriu o caminho marítimo para a Índia porque teimou que conseguia chegar à costa de Marrocos sem precisar de bússola. Porque em norma, entre nós, é assim que acontece.
Por isso ninguém se alarmou quando a Selecção deixou os apuramentos para o Mundial 2010, o Euro 2012 e o Mundial 2014 adiados para o play-off: no fim correu tudo bem.
Nada de novo, portanto: no fundo cumpriu-se Portugal.
Surpreendente, sim, é este sossego, este silêncio, esta quietude, esta paz de espírito, até: não é normal. Nunca me senti tão alemão, e atenção que isto não é um elogio.
De repente Portugal garante o apuramento com tempo e sem sobressaltos, no fim de uma fase de apuramento equilibrada e competente. Não há surpresas na lista de convocados e não há tumulto nas concentrações. A Selecção tem ordem, tem critério, tem até uma lógica.
Para o cúmulo vai a Inglaterra, joga uma hora em inferioridade numérica e no fim perde da forma mais honrada e imaculada possível.
Com sorte ainda vai garantir o apuramento para os oitavos de final ao segundo jogo. Depois disso jantamos todos às seis da tarde e invadimos os bares às dez da noite. O governo não voltará a falhar uma previsão e deixará de existir a figura do orçamento rectificativo.
Portugal parecerá um país organizado, daqueles que planifica, providencia e proteja. Um país todo direitinho, e de direita, que veste camisa às riscas, faz a cama e dobra o pijama.
O que é óptimo para os doentes do coração, mas péssimo para a nossa memória colectiva.
Não foi assim que Portugal escreveu páginas verdadeiramente épicas e que Carlos Manuel marcou o golo da minha vida."

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