"Há um crescimento mental assinalável na Seleção, que se já sente como equipa grande em campo, mas ainda não recebeu de Martínez todas as armas para poder de facto sê-lo
Provavelmente, já passou, para quase todos vós, o momento para falar da Seleção. Esse período vai, religiosamente, de 1 hora antes a 1 hora depois da convocatória e, depois, da divulgação do 11 até 30 minutos após o derradeiro apito. De resto, interessa pouco, a não ser quando já se luta pelo Europeu ou Mundial. Aí, há bandeirinhas nas janelas, cachecóis em para-brisas, anúncios em série nas televisões, hinos afinados cantados a capella e gazetas acumuladas para ir ver jogos lá fora. Um aviso: se a sua companheira engravidar agora, ainda consegue garantir licença para ir para a bancada nos Estados Unidos, México e Canadá. Já se for você a abençoada, gabo-lhe a coragem. Vá — e pode fazê-lo a partir das duas semanas de vida — ou fique em casa, será sempre uma heroína.
Portugal é, reconheça-se, também vítima do próprio sucesso. Passou a ganhar mais vezes do que no passado, não só por estar mais forte, mas também por disputar qualificações acessíveis e que apuram cada vez mais seleções, o que afasta a discussão. Já eu vi Portugal cair diante de Itália e Suécia (1988), Bélgica e Checoslováquia (1990), Países Baixos (1992), Itália e Suíça (1994), e Alemanha e Ucrânia (1998). Hoje, rivais assim já só se veem lá mais para a frente. Sem haver muito a perder, o interesse também é menor, porém estou tentado a ficar-me pelo paradigma da falta de cultura desportiva, que leva a que as paragens para as seleções coincidam com a perda generalizada de interesse em campo, graças ao menor sentido de pertença. Quantos de nós não passaram pelas redes sociais e viram comentários como «A minha Seleção é o Sporting!» Ou «o Benfica». Ou «o FC Porto». Apenas sintomas.
Nas bancadas também se percebe, à exceção de uma ou outra claque arregimentada pela federação, que os adeptos, na maioria, não são os mesmos. Os que vão ver a Seleção estão ali pela festa, pela família, por Cristiano Ronaldo, por exemplo, ou outra estrela, e não tanto pelo jogo. Não é que isso tenha algo de errado, bem pelo contrário, todavia, há aqui uma fratura entre o que significa o clube e a Seleção para cada um dos portugueses, com penalização para a última. Roberto Martínez até veio de certa forma preparado, de uma Bélgica dividida política, social e culturalmente, que ainda assim se conseguia unir, no seu tempo, à volta da equipa nacional.
Mesmo que a poeira já tenha assentado e a maior parte de vós já esteja a pensar como organizar a agenda para assistir à próxima partida do mais-que-tudo, seja no estádio ou à frente do ecrã, num grupo de amigos, com cerveja, amendoins e tremoços à discrição, ou simplesmente sozinho, este texto é sobre a Seleção.
Ora, perante adversários de classe média baixa, Portugal fez o fundamental. Venceu e tem o apuramento na ponta da língua. Na Hungria, fê-lo de forma mais sofrível do que o esperado, mesmo que se reconheça a Szoboszlai e a Kerkez, sobretudo estes, grande qualidade. E a essa nota de instabilidade defensiva juntam-se mais umas quantas ideias que reúno aqui.
Dos quatro centrais, o selecionador tem uma certeza (Rúben Dias) e três dúvidas, ainda que não o admita. Gonçalo Inácio foi ainda assim titular diante da Arménia, mas com o crescer de exigência preferiu-se adaptar Rúben Neves. António Silva saltou lá para dentro na hora de defender, contudo, Renato Veiga, que a certa altura pareceu ganhar espaço, não somou um único minuto. Por isso, talvez seja importante fazermos o exercício: o que é que um médio da liga saudita, que tem boa capacidade de distribuição longa e remate de fora da área, acrescenta a um central da Liga, capaz de distribuir curto e longo com eficácia, está mais rotinado na cobertura da sua área e ainda é referência nas bolas paradas ofensivas? Deixo que respondam vocês.
No meio-campo, o selecionador está convicto de que Vitinha e João Neves, mais ou menos vezes pela direita, têm de jogar juntos, porém a verdadeira questão tem sido encaixar as demais figuras. Ainda não foi desta que Bruno Fernandes pareceu confortável em ter apenas o que sobra da dinâmica de construção transplantada de Paris, enquanto Bernardo Silva já pareceu mais ligado ao processo que o rival mancuniano, muito confortável no controlo da partida através da posse e há muito preparado para ocupar o espaço livre sem bola. Desperdiçar o talento de qualquer um dos dois parecerá criminoso, porém o processo coletivo deveria mais uma vez ser prioritário. Já sabemos que Martínez pensa doutra forma.
Não há muito a acrescentar na frente. Prefere-se a eficácia de Ronaldo na área a soluções que aproximariam o espanhol em muitos mais momentos do seu modelo, como Gonçalo Ramos. No primeiro encontro, a proximidade do agora também Al Nassr João Félix ajudou o recordista de tudo e mais alguma coisa (sem ironia), no segundo o seu isolamento forçou os colegas a cruzar demasiado, bloqueou o ataque posicional — os seus movimentos são quase sempre feitos à sua medida e não de um ponto de vista mais associativo e coletivo — e a equipa tornou-se também mais vulnerável às saídas rápidas magiares naquela pressão que só funcionará quando for verdadeiramente feita em conjunto. E era apenas a Hungria…
Quem ler pode ficar com a sensação de que muita coisa está mal, porém a ideia que deve ser retirada é que poderia estar ainda melhor. A equipa continua muito débil diante de blocos mais baixos, um momento em que Roberto Martínez sente dificuldades desde os primeiros tempos da carreira, quando começou a treinar melhores atletas, ainda que haja quem elogie aquela rotação quase estéril da maior parte dos elementos do ataque. Sublinhe-se sim o crescimento mental da Seleção no pós-Liga das Nações, que o modelo ainda não acompanha. E não esqueçamos de elogiar vontade e postura.
O espanhol continua a ser um ou dois passos em frente em relação a Fernando Santos, que as melhores línguas considerariam certamente que apenas perdeu o toque de Midas ao ser despedido do Azerbaijão, depois de Besiktas e da Polónia. Ou a Mourinho. Ou às ideias de Abel Ferreira. É que, ainda longe de ser o homem certo, Roberto Martínez é o mais certo que, para já, podemos ter."

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