"Há uma história paradigmática de como Max Verstappen foi criado e moldado para um dia ser piloto de Fórmula 1. O neerlandês tinha apenas 14 anos e numa corrida de karting, no sul de Itália, foi demasiado agressivo num duelo em pista. Obrigado a abandonar numa prova que, em condições normais, venceria sem dificuldades, o adolescente teve que lidar com a fúria do pai no longo caminho até casa pelas estradas transalpinas.
Jos, antigo piloto, sempre foi um tipo irascível. Chegou a ser colega de equipa de Michael Schumacher na Benetton nos anos 90, mas a imagem mais marcante da sua passagem pela categoria-rainha será ter sobrevivido à paragem nas boxes mais assustadora da história da Fórmula 1. Naquela tarde, ainda em Itália, a meio da discussão com o rebento, em quem colocou toda a sua atenção e pressão, porque queria que fosse melhor piloto que ele próprio, Jos parou numa numa estação de serviço e expulsou Max do carro.
A história é normalmente contada em tom de tough love, de como é preciso enrijar a criançada para que cresça forte e ciente dos sacrifícios. Para mim é apenas um caso de maus tratos infantis, mas que sei eu disto.
Max Verstappen cresceu assim, por vezes à base da dureza desnecessária, para expiar aquilo que o pai nunca teve talento para fazer: vencer corridas, campeonatos, bater recordes. Com 17 anos foi o mais jovem de sempre a participar num grande prémio de Fórmula 1, um ano depois o mais precoce a vencer uma corrida, logo na estreia pela Red Bull. No domingo sagrou-se bicampeão mundial, com apenas 25 anos, depois de 12 vitórias em 18 corridas e quando ainda faltam quatro provas para o final da época.
A dimensão do talento de Max, a mentalidade implacável nutrida por Jos e uma máquina perfeitamente afinada pela Red Bull trazem tanta surpresa a este título como ver o Bayern Munique campeão na Alemanha, um título ainda assim anti-climático já que o neerlandês só soube da honra revalidada já depois de sair do carro, à conta de mais uma confusão made in FIA no Japão: a chuva torrencial permitiu que se completassem apenas 28 voltas e toda a gente, pilotos incluídos, acreditaram que seriam distribuídos pontos pela metade. Mas afinal a ambiguidade dos regulamentos permitiu que os pontos fossem atribuídos na totalidade. E mesmo que Max Verstappen seja campeão em 2022 com todo o mérito e com uma superioridade imaculada, são dois anos como campeão com banzé regulamentar à mistura, depois da triste debacle da federação automóvel no GP Abu Dhabi há um ano.
E é nestas confusões que têm de se focar a FIA e a Liberty, a empresa norte-americana que transformou a Fórmula 1 numa competição para brancos e ricos de meia-idade num dos produtos de entretenimento mais excitantes dos últimos anos. Depois de um final de época polémico e até à última volta em 2021, 2022 voltou a trazer mais polémica, mas um final zero emocionante. E polémica sem emoção competitiva é coisa estéril, que mais ano menos ano cansa quem vê. Os regulamentos devem ser suficientemente claros para que a Fórmula 1 não pareça uma competição hiper-profissionalizada em que se tomam decisões ad hoc. E no próximo ano, a temporada terá umas nunca vistas 24 corridas à volta do mundo, excelente para as audiências e para os cofres da Liberty, menos para a saúde dos pilotos e mecânicos e eventualmente para a própria competição a longo prazo. Se o domínio de Max continuar nos próximos anos, corremos o risco de termos campeonatos decididos a faltar cinco, seis corridas para o final da época. E como se vão vender essas cinco ou seis corridas? A ambição desmedida de sugar tudo o que é possível do produto não fará exatamente maravilhas pela sua sustentabilidade.
Aos 24 anos, Verstappen ainda tem muitos recordes para roubar, os sete títulos de Hamilton e Schumacher passam seguramente pela sua cabeça, e até lá a Liberty estará segura, mas sem competitividade não há motivação. A nova não-normalidade da Fórmula 1 corre o risco de se tornar normal. E aqui normal é sinónimo de chata, com decisões baseadas em artigos em papéis e com um interminável campeonato. Quando assim for, as audiências mudam para o desporto ao lado. E o próprio Verstappen, competitivo como é, cansar-se-á, porque a marca dos prodígios e dos atletas que são projetos dos seus próprios progenitores é fartarem-se cedo quando a cenourinha da motivação é comida por eles próprios e por outros. E outros que muitas vezes só deviam ter a preocupação de regá-la, não de comê-la."
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