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terça-feira, 20 de setembro de 2022

A simplicidade prática do Benfica, que já tem tanto a perder


"O Marítimo entrou e saiu do Estádio da Luz como a única equipa que ainda não pontuou no campeonato, goleada (5-0) pelo ímpeto vertical e de processos ofensivos simples do Benfica, que continua a ter períodos nos quais executa o mais difícil que há no futebol: jogar simples e extrair benefícios disso. Várias partes da culpa estão em Enzo Fernández, o motor argentino com pernas para quem Portugal não deverá ser casa durante muito tempo

Nada a perder pode ser uma mentalidade, um proverbial “que se lixe” para quaisquer dardos arremessados pela vida. O senão desse estado de espírito de constante encolher de ombros é o facto de ser essa mesma vida a escolher o que nos põe à frente ou o que nos dá e, se patavina nos der, o nada se ter a perder passa a ser um facto - haveria uma terceira hipótese, mas o filme em que Tim Robbins apanhar a esposa a ser-lhe infiel com o chefe, entra num carro e Martin Lawrence o tenta assaltar, no meio do trânsito, para depois virarem compinchas, é irrelevante para lides futebolísticas.
Em concreto, as do ilhado Marítimo, ainda sem pontos esta época e já goleado um par de vezes por cinco golos, contra o qual Roger Schmidt disse ser “perigoso” jogar por ser o único no campeonato a zeros. Apenas o dizendo, sem o justificar, estaria a advertir para um eventual atrevimento de uma equipa dona de nada, portanto com nada a perder e com um novo treinador, João Henriques, feitor só de um jogo com os madeirenses antes de entrarem no Estádio da Luz de forma contrária ao que o treinador alemão previra.
Recatado, com três linhas de jogadores compactas e toda a sua gente atrás da bola e corpos mais acumulados ao centro do campo, querendo ser impeditivos de o Benfica enrolar o novelo de passes no carril central, o Marítimo montou-se para se fechar e precaver. Não para se perigar. Nem cinco jogadas levaram para o meio-campo dos encarnados, onde o barítono Enzo Fernández abafava qualquer momento de reação à perda e, com ela, soprava com rapidez e certeza passes para variar o flanco por onde a bola era para ser trabalhada. Os ritmos que o argentino se encarrega de acelerar eram os que, depois, tinham a calma de João Mário para decidir por onde as jogadas eram resolvidas.
Essas variações constantes de jogo foram aniquilando, aos poucos, os esforços do Marítimo para limitar as receções de Rafa, João Mário e David Neres em relva mais central. Atropelados pelas trocas posicionais feitas enquanto se davam poucos toques na bola - sobretudo à esquerda, do baixote e barbudo português com Grimaldo, nas sete quintas com a projeção atacante que a forma de jogar de Schmidt lhe dá -, o tempo não se fez amigo dos madeirenses.
Cada minuto os inundava mais no ímpeto das tabelas constantes e respeito pelo jogador de frente para a baliza do Benfica, combinado com a cautela dos futebolistas que sobram e longe da bola, mas colados a adversários para os assomarem com pressão mal a equipa fique sem uma jogada. E João Mário bateu uma bola no ar e de primeira (24’) antes de correr por entre centrais para entortar um remate nas barbas do guarda-redes (33’), Rafa receberia de Grimaldo a bola que reclamaria num ressalto (28’) para fazer o 1-0 e quase o repetir, em jogada-fotocópia (41’), antes de uma desmarcação de Gonçalo Ramos o deixar nas barbas do tipo das luvas do Marítimo, picar a bola (44’) e o guardião a interceptar. Uma avalanche de pendor vertical que só teve interrupção com o intervalo e oposição no guarda-redes adversário, que impediu uma goleada precoce.
Em todas essas oportunidades e nas jogadas que careceram de último passe atinado, houve uma omnipresença. Fosse no raiar das jogadas ou na criação de como seriam concluídas, Enzo Fernández plantou a sua impressão em quase todos os momentos relevantes do jogo do Benfica. E algo há de simplistamente especial no argentino, em como executa certeiramente todo o tipo de ações sem artifícios, que troca por eficácia e sentido prático incomuns para um médio de, tão só, 21 anos e já de pele cheia de tatuagens, que rasga passes longos, faz tabelas, pica bolas na profundidade e assalta receções de adversários que sustentam todo um jogo.
Enzo Jeremías de seu nome é um médio já absurdamente completo para a idade, ele não está na tabela entre Rafa e Bah que deixa o dinamarquês a perseguir uma bola que lhe pede um cruzamento sem olhar e que sai rasteiro, para onde Gonçalo Ramos parecia já saber que teria de aparecer e tocar o 2-0 de calcanhar, assim que a partida se retomou (46’). O Marítimo daria razão às luvas nas mãos de Vlachodimos, cinco minutos volvidos, fazendo-o agarrar uma inofensiva bola vinda de um lançamento lateral longo, antes de o médio que pouco durará no desequilibrado futebol português se destacar, mais uma e cada vez mais, no momento ofensivo.
Segurando e trabalhando uma bola junto à linha, livrou-se de um adversário e cruzou para o imberbe António Silva, central de 18 anos que tem jogado como um adulto de barba grisalha que ele não tem, rematar contra o poste (60’). O aglomerar de oportunidades ligadas pelo Benfica sucederia, em série, ainda mais após o 3-0 que veio do mais frenético dos momentos: na transição feita após um canto defensivo, Rafa mastigou dezenas de metros com bola e lançou Gonçalo Ramos, paciente a esperar por João Miguel Silva se lançar aos seus pés para lhe picar o golo por cima do corpo (65’).
Poucos minutos tardaria o Benfica e ficar sem o dínamo do seu frenético jogo à la Schmidt, já goleando o treinador cedeu ao que pouco tem feito esta época, rodar peças para dosear o cansaço e mirar o futuro. Definido o onze base, visto como os processos mecanizados estão com os do costume - entre os titulares, só Aursnes foi novidade - e perante um Marítimo tão erróneo e falível, o treinador tiraria o Enzo que é o cimento da equipa, Rafa que é quem mais acelera e depois Grimaldo e Bah, os laterais. A praticabilidade do jogar simples continuaria.
Enumerar a quantidade de jogadas com fim na baliza do adversário que o Benfica fabricaria, nos derradeiros 20 minutos, é um exercício de redundância. A equipa manteve a toada mesmo com diferentes jogadores e, em vários períodos, cumprindo a mais árdua tarefa que Johan Cruyff diagnosticava ao futebol, um jogo simples mas que é difícil jogá-lo de forma simples. É mais prático resumir-lhe os exemplos flagrantes.
O argentino Lucho Vega ainda nem recebera um passe com desleixo, no próprio meio-campo, e Florentino Luís já se empolgara na pressão para o roubar e dar a David Neres a chance de rematar em arco o 4-0. A acabar, uma posse de bola mastigada em torno da área madeirense chegou ao repentismo de Julian Draxler, talentoso alemão que ainda parte do banco de suplentes para simular, simular e simular o remate que fez entrar no ângulo reto superior da baliza e fixar o estrondoso 5-0. E o Marítimo de rastos, vergado a mais uma mão a abarrotar de golos que o mantém sem algo do qual pode ficar refém neste campeonato.
Muito, por contraste, já tem o Benfica a perder pelo tanto que logra ter. O modelo de jogo vertical e atacante, mecanizado ao ponto de os jogadores não encravarem para emanarem o que cada um dispõe de melhor, faz dos encarnados uma equipa que voa na simplicidade com que rapidamente extrai benefícios dos práticos processos ofensivos Roger Schmidt lhe deu, o que é muito face a tão pouco tempo de trabalho. Frase aplicável, ainda mais, a Enzo Fernández, o motor argentino com pernas em quem qualquer equipa de futebol será felizarda em poder-se basear."

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