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quarta-feira, 27 de abril de 2022

O que os miúdos do Benfica podem lembrar a Messi, Neymar e Mbappé


"Houve um tempo no futebol em que a conquista do título tinha como consequência quase imediata uma invasão de campo. Coisa pacífica, mas de uma euforia desmesurada.
A tensão crescia ao ritmo dos ponteiros do relógio. O povo aglomerava-se junto às linhas do campo, dando como margem um palmo de terreno em sinal de respeito pelas regras do jogo, e avançava desenfreado assim que soava o apito final.
Aquele era o momento dos adeptos e os craques não tinham alternativa a voltarem a ser comuns mortais. Vulneráveis, saíam em roupa interior como castigo por não terem pernas para correr até ao túnel. Convencidos ou não, juntos, celebravam numa anarquia saudável.
Parece ter sido noutra encarnação. Aquilo que se designa por futebol moderno impôs um distanciamento físico cada vez maior para adeptos e até para jornalistas.
Acomodámo-nos à nova realidade, até que no passado sábado nos deparámos com estupefação com aquele que será um novo estágio da «indústria do futebol»: os supostos festejos do Paris Saint-Germain pela conquista do título.
Assim que soou o apito final, num empate com o Lens com menos um jogador em campo, ouviram-se assobios nas bancadas do Parque dos Príncipes. Messi, Mbappé, Neymar e outras superestrelas cumprimentaram-se como se tivessem acabado de vencer o Torneio do Guadiana e recolheram a passo aos balneários.
Não havia nada de especial naquele feito alcançado por um conjunto de jogadores contratado para satisfazer o capricho de conquistar a Liga dos Campeões. Dado o investimento astronómico, capaz de driblar as regras do fair-play financeiro, o PSG cumpriu a obrigação de ganhar antecipadamente um campeonato em que corre à parte.
Ainda assim, aquela «celebração» expôs bem mais do que o distanciamento crescente, mas sim um alheamento evidente entre as celebridades e os seus fãs.
Os adeptos saíram do estádio de imediato e preferiram festejar nas ruas de Paris, por outro lado, uns quantos jogadores do PSG reuniram-se no dia seguinte em casa de Neymar para comemorar.
O plano não era este.
Durante a última década, a Qatar Sports Investment não descurou a relação entre as estrelas cintilantes que contratava e o seu público-alvo.
Comprou-lhes o afeto com cláusulas esdrúxulas nos contratos milionários, como bónus por acenar para a multidão nas bancadas – Neymar, por exemplo, recebia 375 mil euros mensais, como em 2018 divulgou um documentário da France 2, citando documentos revelados pelo Football Leaks.
Por outro lado, a administração garantiu espaço no Parque dos Príncipes à rapaziada dos «banlieues» a troco de um ambiente mais efervescente, contrastante com as tribunas em que a postura dos espectadores pouco difere da de um evento social, ao estilo de um desfile da Paris Fashion Week, onde se vai para ver e ser visto.
Tudo isto é, porém, uma construção artificial que se esboroa a partir do momento em que os adeptos, a mola real de qualquer clube, passa a ver os seus ídolos como vedetas, quando não como mercenários.
Os petrodólares podem juntar grandes jogadores e colocar-lhes o mesmo emblema ao peito. Não compram, porém, uma equipa. A identificação e o sentimento de pertença não estão à venda no mercado de transferências.
Se Neymar, Mbappé, Messi e companhia aceitarem um conselho depois daquele espetáculo deprimente do passado sábado, que olhem para os jogadores Bayern de Munique, que nesse mesmo dia não mostraram enfado na comunhão com os adeptos, apesar da rotina de terem vencido o 10.º título consecutivo e não o 10.º da história do clube.
Se já não tiverem memória futebol na sua essência, pois que espreitem os miúdos do Benfica, que na última segunda-feira golearam o Salzburgo na final e quebraram o enguiço na Youth League festejando na Suíça, rodeados de emigrantes portugueses, com a mais autêntica felicidade e sentimento de dever cumprido.
Há algo de profundamente errado no desporto quando se recebe uma taça com um encolher de ombros. A prazo, essa atitude desrespeitosa acabará por minar até o próprio negócio.
Por este caminho, o PSG será cada vez mais uma extravagância estupidamente cara de um estado que tanto pode comprar um clube como um Mundial.
Que a tradição popular nos salve deste assomo de novo-riquismo."

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