"“Perry limpou a cerveja entornada com um guardanapo.
– Desculpa, mas fico lixado quando os árbitros se põem a decidir quem vai ganhar em vez de os deixarem jogar.
– A vida é cruel e injusta, meu amigo – disse Bill. – Ninguém escapa às injustiças da vida, nem mesmo no mundo do desporto.” (1)
Se a vida é cruel e injusta, se o mundo do desporto não escapa às injustiças da vida, é tudo uma questão de perspectiva. Que o digam grandes administradores desportivos, gestores de topo ou agentes de jogadores de futebol. Principalmente estes últimos com um total pago aos mesmos em comissões pelos clubes no ano de 2021 de 443,5 milhões de euros… mais 0,7% que no ano anterior.
Fomos habituados a olhar para o futebol, e a falar dele, como estando a olhar para o desporto e a dele falar. Nada de mais errado! Somos educados futebolisticamente, somos formatados para darmos um pontapé numa bola e julgarmos que estamos a jogar futebol, crescemos numa cultura em que discutimos futebol estando convencidos que nos encontramos no centro de um debate sobre desporto. E os ‘media’ possuem a sua quota-parte de responsabilidade neste assunto: na TV o futebol ocupa as transmissões em directo, os programas com painéis de comentadores, os noticiários… 28 de 32 páginas de um diário desportivo são preenchidas com esta modalidade… e as restantes que nem visibilidade possuem também são as que menos espectadores possuem ao vivo e aquelas que menos dinheiro movimentam e menos lucro dão a certos sectores da sociedade. Filhas de deuses menores!
Recentemente, Gabriel Albuquerque foi campeão mundial de trampolins. Telma Santos foi igualmente campeã mundial de badminton. Uma equipa feminina de goalball portuguesa sagrou-se campeã do mundo. Não abriram noticiários, não vimos entrevistas, não sabemos se foram ou irão ser condecorados pelo PR, não receberam nenhuma bola de ouro ou qualquer outro prémio badalado na comunicação social! Filhos de deuses menores!
Na infância, inúmeros são os brinquedos com a forma de uma esfera. Talvez por ser o único objecto que não possui vértices e arestas e por isso mesmo ser aquele que menos acidentes poderá suscitar com as crianças. Talvez por ser aquele que com mais facilidade perde o seu equilíbrio estável. Crianças que são as mais propensas para serem influenciadas por pais, familiares e amigos para “darem um pontapé na bola”… e logo de seguida instigadas a “serem” deste ou daquele clube (futebolístico, entenda-se!). Uma questão hereditária e, como tal, transmissível, a qual se vai inculcando no indivíduo.
Passa-se a seguir à fase do “jogar à bola” e depois ao querer ser como este ou como aquele jogador de topo. Daí à escolinha de futebol é só um passo… mas nem todos saem de lá craques. Concomitantemente vai-se formando o espectador, vai-se cultivando a paixão, vai-se exacerbando o fanatismo – é a fase em que “os árbitros se põem a decidir quem vai ganhar”. E, como disse Denis Diderot (1713-1784), filósofo francês do iluminismo, “ do fanatismo à barbárie é só um passo”…
Surge então a etapa em que a narrativa do próprio se circunscreve ao recurso à ética, à verdade desportiva (seja lá o que isso for), à necessidade da prevenção da violência no desporto, à luta contra o ‘doping’,à luta contra a corrupção. No entanto olvida inúmeros outros aspectos porque só acredita naquilo em que quer acreditar e, pior que um cego, só vê aquilo que quer ver – é a confirmação do «viés de confirmação».
É este, em traços gerais, o deslocamento do acento tónico na “vida do desportista”, quer seja praticante ou não. Há um padrão na construção da “cultura” desportiva do indivíduo e que revela a longo prazo a sua iliteracia neste domínio.
É costume aferir-se o grau de desenvolvimento desportivo ou o nível de cultura desportiva de um país pelo medalheiro nas várias modalidades (e nos J. O.) ou pelos índices de prática desportiva e de actividade física dos seus cidadãos. O “desenvolvimento desportivo” é um conteúdo completamente diferente do conteúdo “cultura desportiva”. O primeiro, mais abrangente, tem a ver com instituições e formas organizativas – e, consequentemente com resultados desportivos a nível internacional. O segundo está relacionado com valores e com os conhecimentos que a maioria dos indivíduos possuem sobre o fenómeno desportivo e, como tal, sobre as suas competências para emitirem opiniões sobre o fenómeno desportivo. O problema não está no facto de possuírem opinião… uma opinião especializada sobre um só determinado aspecto do fenómeno desportivo ou uma opinião global e abrangente do mesmo… o problema está no facto de só serem detentores de uma opinião superficializada, de não possuírem uma opinião fundamentada e alicerçada no conhecimento – que normalmente não buscam – pois seria isso que lhes poderia dar a competência de ou para opinarem…
(1) Sigler, Scott, 2009. “Infecção”. Col. 1001 Mundos, Lisboa: Gailivro."
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