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segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Há nuvens na selva


"Quando tive a sorte de ir fazer os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, a maravilhosa cidade maravilhosa, foi necessário pedalar para descobrir e aprender inevitabilidades ou detalhes sobre alguns desportos. Mais importante do que isso tudo, o que ficou foi um olhar diferente sobre o desporto, o atleta, sobre a mulher e o homem. Sobre os céus de cada um. E as nuvens.
A história começa quase sempre em criança. Por prazer, claro. É por isso que costumo dizer, até um atleta ou jogador(a) o desmentirem, que quanto mais perto vivem dessa criança, ao longo da carreira, mais felizes são. E isto tem a ver com essência, natureza, expressão do seu “eu”, estilo e, lá está, prazer. A competição pode confundir tudo. A pressa, a ambição ou, pior, a pressa e ambição alheias podem servir de acelerador de partículas para viver numa sociedade apressada, despida de olhares e sonhos ternos. O prazer vai sofrendo pancada e às vezes o “eu” é de outro alguém. Quando se começa a ver aquilo que se faz por amor e prazer como trabalho, as coisas começam a mudar.
A futebolização da sociedade tem sido óbvia. Ou se é notável e vencedor, ou quase irrelevante. Não há meio-termo, não há simpatia pelo compromisso, trabalho diário, paixão e mérito, que poucas vezes é regado e recompensado pela gloriosa prata. Nem falemos do valor do prazer. Os atletas, sejam olímpicos ou não, sofrem muito com esta nossa falta de cultura desportiva. Indiferentes a condições ou ao binómio possibilidades-probabilidades, exigem-se medalhas. Era o que faltava, é o mínimo, ou foram lá passear?
Julio Velasco, um mago da oratória e também grandíssimo treinador de voleibol, explicou-o há uns tempos. “Não é lindo só quando se ganha, como dizem muitos. Há uns que dizem ‘eh, sim, é lindo isso de o importante é participar, [mas] o importante é ganhar’. Isso é uma estupidez. Nos Jogos Olímpicos, sobretudo em certas provas como natação e atletismo, há muitos atletas que sabem que não vão ganhar. Eles sabem. Não é a bola redonda como no futebol [e tudo pode acontecer], não vão ganhar. E, no entanto, preparam-se como se fossem ganhar. Porquê? Porque combatem contra eles próprios, querem baixar um segundo, uma décima de segundo, querem lançar um metro a mais. Isso é parte de ganhar. Ganhar não é somente ser campeão, é superar-se, melhorar. O desporto ensina isto aos jovens.”
Nessa luta silenciosa pela humanização do desporto, também me lembro de Sergio Hernández, o selecionador de basquetebol da Argentina, e do que ele disse quando Scola disse adeus àquela modalidade, nos primeiros dias de agosto. “O legado que o Luis deixa é incrível. Todos, todos, em algum momento, nos pusemos atrás dele, incluindo eu, o seu treinador, pela liderança e exemplo de vida. Não só no basquetebol, é o exemplo de constância, ética, trabalho, lucidez, respeito, de honrar o que se faz. Com o Luis aprendi que ganhar é pouco, que ganhar um jogo ou ser campeão não é o mais importante”, dizia enquanto a voz puxava o travão de mão, ameaçando desabar. “O mais importante é honrar, a cada segundo, o que fazes na vida, seja o que for. Agradeço-lhe. E que todos estejamos atentos a esse legado, necessitamos destes exemplos.”
Lembrei-me destes senhores por causa da entrevista do Diogo Pombo a Bárbara Timo, a judoca que acabou de conquistar a medalha de ouro no Grand Slam de Paris, o primeiro torneio internacional pós-Tóquio. E isto na semana em que admitiu que superou uma depressão. Faz falta escutar os desabafos desta mulher, de 30 anos, e o alerta “procurem ajuda”. Não é demais recordar que em cada atleta está uma mulher e um homem com dúvidas e convicções. Afinal, dissimulada, a dor não sorri como o sorriso. Vale a pena compreender a mente de uma atleta que sofreu com as labirínticas nuvens da mente. Perdeu peso, pensou em desistir.
Timo, na mesma entrevista, refletiu também sobre a competição em tenra idade, onde tudo começa: “A forma como a competição é levada quando és muito jovem tem muita pressão, é muito pesada, faz com que, às vezes, nem seja muito real. A criança treina e tem responsabilidades a um nível do qual não precisa. Cada coisa tem o seu tempo e acho que os treinadores, os amigos, os mais velhos e toda a equipa envolvida tem de estar muito atenta para criar um ambiente saudável para os atletas. Concorrência já vai haver, já há competição, se um atleta está ali é porque gosta e não é preciso haver um clima de selva. Há formas e formas de evoluir e, além da competição, a pessoa tem de ter uma cabeça saudável e para isso é importante que o ambiente em torno dos atletas seja saudável. A competição tem de ser saudável”. A palavra “saudável” apareceu quatro vezes em tão poucos segundos de conversa. Que a meninada se divirta, que se faça gente, boa gente. Há tempo e espaço para ser tudo mais sério. Os exemplos, os bons exemplos daqueles que honram o que fazem todos os dias, são indispensáveis.
Dizia que no Rio de Janeiro aprendi uma coisa ou duas e, admito, foi ali que os judocas se transformaram nos meus atletas preferidos, um sentimento reforçado nos últimos Jogos de Tóquio. Se intrigou o som daquelas tentativas de pegas que desaguavam tantas vezes numa facunda chapada, impressionou e ainda impressiona a dignidade na derrota. Telma e o seu “eu vim aqui para ficar” ajudaram àquela romantização da superação, pois a judoca chegava ali depois de uma lesão complicada.
Fiz a viagem para o Rio enquanto lia o livro dela. “Saber cair” é um dos capítulos, era algo literal mas também metafórico, pois em Atenas não soubera gerir a derrota. Da boca de Bárbara Timo saiu a mesma ideia: “Antes de aprender qualquer golpe ou a derrubar, a primeira coisa que aprendemos no judo é a cair, temos de saber como cair. É a primeira lição. Faz parte ganhar, mas também faz parte perder, tens de saber lidar com os dois”."

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