"O Benfica jogava em Alvalade, mas não contra o Sporting. Mandava a Taça de Portugal que disputasse a primeira mão da meia-final contra o Ferrovia de Nova Lisboa. Era a primeira vez que os encarnados jogavam para a Taça com um conjunto africano.
Não estava muito público em Alvalade para ver o Benfica. A bem dizer, havia razões para tal. Afinal, o Sporting também não estava presente. Como assim?, perguntará o leitor. Já lá vou, já lá vou. O jogo contava para a Taça de Portugal, meias-finais. As regras mandavam que duas equipas ultramarinas fizessem parte da contenda, não fosse o Império Uno e Indivisível do Minho a Timor. Corria o ano de 1958. 5 de Maio.
E assim, em Alvalade, o Benfica disputava o acesso à final com o Ferrovia de Nova Lisboa, Angola.
E assim, no Restelo, o FC Porto disputava o acesso à final com o Desportivo de Lourenço Marques, Moçambique.
Depois haveria uma segunda mão. Claro que os clubes da Metrópole, finórios, não se dispunham a grandes deslocações lá para o sul do continente africano, no caso. O Benfica recebeu o Ferrovia na Tapadinha.
Curiosamente, as primeiras páginas davam destaques às vitórias dos metropolitanos desta forma: Benfica 6 - 2 Angola; FC Porto 6 - 2 Moçambique.
Qual respeito pelo nome dos clubes, qual diacho.
Já respeito tiveram os dirigentes do Sporting Clube de Portugal fazendo questão de se apresentarem no relvado, recebendo os dois opositores com um notável cavalheirismo.
Ninguém tinha dúvidas sobre a incomensurável superioridade dos encarnados. Só para ficarem com uma ideia daquilo a que chegou, o resultado do jogo da Tapadinha ficou em 11-1. 17-3 no total. Era do quilé!
Alertavam certos jornalistas mais sabedores para gente de qualidade da equipa do Ferrovia. Já se sabia: se aparecia algum artista pelas colónias, os clubes aqui no rectângulo atlântico iam a correr buscá-los.
Palma Medeiros, Soeiro e Nascimento: avançados. Talvez Júlio Coelho, defesa. Por via das dúvidas, que ficassem atentos. Dirigentes do Benfica e público, claro está!
Atrevimento que se pagou caro
Ao contrário das suposições, os africanos atiraram-se sobre a defesa encarnada como gato ao bofe. Era preciso descaramento. E coragem. o povo não se fez rogado: aplaudiu a atitude.
Bastos não tirava os olhos da bola.
Ângelo, Pegado e Mário João deram corda aos sapatos.
Quem diria?, pensavam os que se espalhavam pelas bancadas. E puseram-se ali à coca do jogo jogado.
De repente, Águas, também ele africano, também angolano, mas do Lobito, ergue-se nas alturas com aquela sua elegância de flamingo e fez o golo. 1-0: que desilusão! A resistência dos rapazes de Nova Lisboa esfumara-se num instante, três minutos apenas. E agora? Seriam capazes de voltar à luta?
- Não. Não foram.
Minuto 11: Mendes, de fora da grande área, tem um pontapé soberbo. Os ultramarinos pareciam estonteados. Todo o vigor posto naquele arranque da partida era contrariado, pela classe e eficácia dos benfiquistas.
E logo a seguir, José Águas outra vez: 3-0.
Valeu aos visitantes, que até jogavam em casa por via da manigância do sorteio, que os lisboetas resolveram baixar o ritmo. Tarde agradável de sol, boas movimentações e combinações entre sectores, mas cada vez mais devagarinho, à moda de um passeio, de um treino. Mesmo assim, Palmeiro soltou-se num daqueles movimentos tão típicos seus e foi por ali fora apontar o 4-0 quase à beira do intervalo.
Havia quem fizesse contas. Havia quem fizesse apostas. Até onde iria o Benfica se desse na cabeça dos seus jogadores partirem à desfilada para uma goleada das antigas?
As perguntas tiveram resposta breve. Mesmo antes do apito do árbitro para que viesse aí o merecido descanso do minuto 45, Mário João facilitou a vida a Nascimento, e golo do Ferrovia.
Uma festa! Uma alegria! Justificada, como é evidente.
Mais uma surpresa logo no início do segundo tempo. Valente faz um drible habilidoso a Ângelo e deixa o benfiquista irritado. Mas isso é que foi assobiar-lhe às botas. O angolano correu como uma gazela lá das savanas da sua terra e quando chegou à frente de Bastos fingiu que ia dar com um pé e deu com o outro.
Esta agora, heim?
4-2 para o Benfica não era bem uma goleada de encher o bandulho.
Lá se foi o passeio de domingo.
Obrigados a acelerar outra vez o jogo, os encarnados foram em busca de pôr as coisas no seu devido lugar. Centro de Palmeiro, Águas outra vez lá no alto, tão alto, cabeçada infalível. Dois minutos mais tarde, Germano, com Águas a pressioná-lo na pequena área do Ferrovia, faz um autogolo.
Faltava jogar um quarto de hora. Os africanos estão de rastos. Ainda por cima, Coelho aleija-se e não pode continuar em campo. É de novo a moleza da tarde morna que tomba sobre o Estádio de Alvalade. Uns remates de longe, aqui e ali, só para manterem Prates atento.
A pouco e pouco as pessoas foram saindo. Talvez até uma esplanada ali perto para uma cervejinha ou para um capilé. O trabalho do Benfica estava feito. Seis dias mais tarde haveria nova dose. Lá para Alcântara, na Tapadinha. Era assim, nesse tempo, a Taça de Portugal."
Afonso de Melo, in O Benfica
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