"«O ser humano é um equilíbrio entre aquilo em que crê e aquilo de que desconfia. Se alguém acredita em tudo o que ouve, então tem o sistema desequilibrado»
«O bom ouvinte nunca diz nada, mas está sempre de boca aberta»
Millôr Fernandes
- Sabe o que lhe digo?
- Diga.
- Se crês em tudo o que ouves, come tudo o que vês.
- Que brutalidade, excelência.
- Se um sujeito tem ouvidos tão ingénuos que crê e aquilo de que desconfia. Se alguém acredita em tudo o que ouve, então tem o sistema desequilibrado.
- Pois sim.
- Mas se alguém, um outro sujeito, não acredita em nada do que ouve então também tem o sistema desequilibrado.
- Dois desequilíbrios.
- O equilibrado é, então, o ouvido que escuta muito e crê apenas em metade.
- Cinquenta por cento.
- Mais ou menos.
- Se crês em tudo o que ouves, come tudo o que vês.
- Um castigo está aí anunciado.
- Pois está.
- Nem tudo o que vês é para comer.
- Sim, há elementos do mundo concreto que são bem indigestos.
- E por isso, pensando na escuta...
- Sim?
- ... seria bom que o nosso ouvido tivesse uma capacidade de selecção idêntica à do nosso estômago.
- Como seria isso?
- Um detector de mentiras localizado no aparelho auricular.
- Bela invenção!
- Em vez de uma aparelho para ouvir melhor, para ouvir com maior volume, pensar num aparelho que detectasse as mentiras sonoras que querem entrar nos aposentos do ouvido, diria eu, se me permite usar essa expressão.
- Pois, tem razão. De uma certa maneira, é um pouco absurda a ideia de uma aparelho para ouvir melhor se depois o ouvido vai ouvir mentiras.
- Para quê ouvir melhor, de forma mais audível e clara, mentiras?
- Uma boa questão.
- Podemos até imaginar um país, uma ditadura, onde todos estejam a ficar quase surdos. E que isso seja uma preocupação para as autoridades ditatoriais.
- Sim?
- Nessa ditadura, o grande objectivo seria desenvolver um aparelho auditivo para cada pessoa, para que ninguém ficasse surdo.
- Porquê?
- Para uma ditadura é indispensável que os aparelhos auditivos funcionem bem para que os cidadãos escutem a um volume perfeitamente aceitável as mentiras.
- Está a escutar bem as minhas mentiras?
- Isso mesmo. É uma bela pergunta dirigida às pessoas que recuperem artificialmente a audição.
- É preciso que se escutem bem as mentiras para que estas a façam o seu caminho.
- Uma hipótese de revolução, portanto, seria...
- A surdez!
- Isso. Os surdos como elementos pouco influenciáveis pela voz dos outros.
- Por mim, só acredito naquilo que vejo. Aquilo que ouço bem em segunda mão, aquilo que vejo aparece-me em primeiríssima mão, se assim se pode falar.
- Exactamente isso.
- Um conceito importante: a visão dá-nos o mundo em primeira mão, dá-nos o mundo directamente.
- Sim.
- Enquanto a audição de histórias, de factos, de coisas que aconteceram algures com alguém, essas narrações sonoras, são apenas sons que falam indirectamente de visões bem afastadas de nós.
- Se crês em tudo o que ouves, come tudo o que vês. Eis a lição.
- Pensar em alguém que ouve perfeitamente. Um ouvido fisiologicamente impecável. Mas que está cansado...
- Cansado?
- ... de ouvir demasiadas mentiras. E vai, então, ao médico e pede que este lhe coloque um aparelho para ouvir pior.
- Para não ser enganado?
- Para não ser enganado, mas não só. Para ser menos influenciado. Para ser mais autónomo.
- Há aparelhos desses já no mercado? Para ouvir pior?
- Parece que não.
- Quanto aparecerem, quero um.
- Eu também."
Gonçalo M. Tavares, in A Bola
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