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domingo, 19 de maio de 2019

Saltos, tristeza e alegria (ficção)

"No infinito, duas rectas paralelas encontram-se, como sabemos. E dois dias completamente opostos também

Sobre saltos
- Está a festejar, excelência?
- Eu, não. Estou triste.
- Mas está aos saltos.
- Isto não é um salto, é um afastamento temporário do solo. Eu, quando estou triste, excelência, fico cheio de energia. Como um motor.
- Não costuma ser assim
- Não. Mas comigo é assim. Quando estou triste, dou saltos, levanto os braços, buzino, etc.
- Pois. Parece mesmo um estado de alegria.
- Por fora, sim, é exactamente igual. Por dentro é que não.
- De novo! Saltou de novo!
- Isto não é um salto.
- Não?
- Deixo de gostar um bocadinho do solo. Quando perco. É só isso.
- Parece-me um salto.
- Salto seria isto. Veja, excelência (salta).
- Igualzinho, Vossa excelência, fez exactamente o mesmo movimento.
- Mas agora estava a pensar noutra coisa, não na tristeza.
- Sim?
- Sim, excelência. Neste segundo salto, não me estava a afastar do solo, estava a aproximar-me das nuvens. É completamente diferente.
- Ah, ok.
- Há saltos que parecem querer ocupar posições intermédias entre o chão e o céu. Isso é um facto.
- São os saltos de quem ganha.
- Os saltos eufóricos.
- E depois há os outros.
- Que são...?
- Os que não querem voar, nem ficar no chão.
- Então?
- Nem estão confortáveis em baixo nem em cima, por isso saltam. Não estão bem em lado nenhum, de facto. Nem no chão, nem no ar.
- E saltam?
- Sim, saltam. É um salto triste, mas é também uma solução.
- Compreendo, excelência.

Festa. Lixo e distâncias entre países
- Aquilo que se produz numa festa não deveria ser designado como lixo.
- Exactamente, excelência. Deveria ter um nome mais poético
- Imaginar uma festa que termine e que deixe para trás ouro e outras especiarias. Assim me parecia bem. Uma festa é uma festa!
- Isso! Os restos de uma festa deveriam ser, pelo menos, automaticamente recicláveis.
- Um lixo que se auto-destrua, eis do que necessitamos.
- Outra boa sugestão, excelência.
- Uma festa que não cause lixo, que não deixe atrás um único objecto, um único resto, um único vestígio...eis uma utopia, excelente excelência. Ninguém se diverte sem material de apoio, digamos assim.
- Mas no Japão vi isso.
- O quê, excelência?
- Uma festa com milhares de pessoas que, uma hora depois de terminada, estava completamente desmontada e limpa. Não havia vestígio algum do que se passara ali há menos de uma hora. Parecia um espaço habituado à monotonia de sempre.
- E quem limpou tudo, excelência, quem foi?
- Os próprios senhores participantes da festa.
- Verdade? Isso é inacreditável.
- Onde fica o Japão?
- Bem mais longe do que parece, excelência, bem mais longe.

Dois diálogos com duas ideias opostas
Diálogo A - O passado
- O que há depois de ganhar?
- O dia seguinte.
- E depois de perder?
- O dia seguinte.
- Então é igual!
- Sim, o dia seguinte de quem ganha e de quem perde é igual. O que é diferente, é a véspera.
- Ah, compreendo.

Diálogo B - O Futuro
- Como é o dia depois de se perder?
- É péssimo.
- E o dia depois de se ganhar?
- É maravilhoso!
- E dois dias depois, como são os dias de quem perde e de quem ganha?
- O dia de quem perde vai perdendo a péssima intensidade. E o dia de quem ganha vai perdendo a maravilhosa intensidade.
- E?
- E, passado um mês, mês e meio, os dias estão exactamente iguais.
- Um mês?
- Mais ou menos.
- Explique-me.
- No infinito, duas rectas paralelas encontram-se, como sabemos. E dois dias completamente opostos também. Em suma, no infinito, como toda a gente bem sabe, as coisas opostas juntam-se.
- Ok... E quanto tempo demora a chegar-se ao infinito, excelência?
- Se for a andar?
- Sim.
- Mês, mês e meio, mais ou menos.
- A tal duração de que falava há pouco.
- De facto, excelência: o infinito nos países mais pequenos não é assim tão inalcançavel. O infinito é mais o sítio, o ponto exacto, em que já se esqueceu o passado e, portanto, é também o dia onde se começa de novo.
- Compreendo, excelência.
- Ou seja: quando começa a nova época? Já à data?

Para terminar
Para terminar, comentário do comandante Wellington, que derrotou Napoleão na batalha de Waterloo:
«Nada, a não ser uma derrota, é tão melancólica como uma vitória».
E uma rápida citação, bem irónica, do Ulisses de James Joyce:
«Mais uma vitória como esta e estamos perdidos!»

Escrito em Lisboa, 18 de Maio, 16 horas"

Gonçalo M. Tavares, in A Bola

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