"A autoridade vê-se pelo silêncio que existe em redor, silêncio que não resulta de uma ordem ou proibição
Pensar em expressões como «o treinador deu um murro na mesa» e outras. Dar murros em mobiliário não me parece uma das melhores formas de mostrar autoridade.
Competição de algazarra
1. Por vezes, a autoridade parece uma competição de vozes. Quem fala mais alto, manda. Galos humanos que gritam. Não se trata de argumentos uns contra os outros. Trata-se de puro volume de voz; altitude vocal. A voz mais alta ganha nessa competição irracional. Lideres políticos, desportivos e outros.
Os xamãs
2. Pascal Quignard, um dos grandes escritores franceses, lembra que os Xamãs da Sibéria, os mais respeitados humanos dentro de uma comunidade, falavam numa voz tão baixa que quase não se escutava. Esse murmúrio do xamã lembra «a pequena bolinha de leite que aparece na boca dos recém-nascidos depois de amamentados». Quase não existe no exterior. Em certas línguas, Xamã significa precisamente «murmúrio em voz baixa». O chefe, portanto, é aquele que fala em voz baixa. Esse murmúrio, diz Quignard, está «a meio caminho entre o oral e o escrito».
Uma bela imagem, esta. É, então, uma voz tão baixa que quase não é som; é quase palavra escrita, palavra muda. E a palavra escrita, tradicionalmente, é lei: é aquilo a que se tem de obedecer. O murmúrio do xamã, da grande autoridade, é tão potente que faz de quem o rodeia soldado cumpridor de uma mensagem que parece escrita.
O silêncio
3. A questão aqui essencial é que a autoridade nestas comunidades é expressa precisamente pela voz, não em gritos, não em volumes altos, nem sequer médios ou baixos, mas em murmúrios. E para se escutar um murmúrio tem que existir um silêncio gigantesco em redor. E isto é a base. A autoridade nada tem a ver com o tom de voz do chefe, isso é para autoritaristas desastrados que aprenderem a chefiar em cursos de fins-de-semana para tontos.
A autoridade vê-se pelo silêncio que não é resultado de uma ordem ou de uma proibição. Nada de expressões do tipo: Calem-se que eu vou falar!, mas precisamente o contrário. Quando o murmúrio do Xamã, do verdadeiro líder, começa, tudo em redor se cala. Não apenas os Humanos à volta, mas também, dizem as lendas, também o resto da natureza diminui o seu volume até porque é contagiada pelo silêncio calmo de um enorme grupo de homens. Nada é mais contagiante do que a agitação ou a tranquilidade. Os pássaros diminuem o seu volume de canto e centram-se numa espécie de canto em murmúrio; os animais de quatro patas ou duas patas, ao pressentiram esse enorme silêncio humano, imobilizam-se também, assustados ou com expectativa, e ficam quietos à espera de qualquer coisa. E até seguramente o barulho das folhas da árvore vai diminuir pois os verdadeiros líderes das comunidades tradicionais, acredita-se, têm um murmúrio capaz de diminuir a intensidade e a velocidade do vento.
Uma forma de dizer: aproximam-se
4. O grande segredo do murmúrio é que obriga precisamente a uma aproximação de quem o rodeia. Quem fala em voz baixíssima, em murmúrio mínimo, obriga os outros a mexerem-se, a mudarem de posição, a aproximarem-se. O murmúrio convoca de imediato uma proximidade entre quem murmura e quem escuta. É impossível escutar um murmúrio estando longe, é impossível escutar um murmúrio estando a falar ao mesmo tempo, é impossível escutar um murmúrio se estivermos desatento ou a pensar noutro assunto. O murmúrio para ser escutado exige proximidade, silêncio, atenção e concentração absolutas.
Demissão
5. O grito é o máximo de voz e a zero de informação ou pensamento. Um líder que grita: Ouçam-me! Ou: Silêncio! deveria de imediato pedir a demissão."
Gonçalo M. Tavares, in A Bola
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